#16 Nordestinos de cara suja
Escrevo este texto no calor do momento. A raiva borbulha no meu estômago e ataca a gastrite. Até quando seremos representadas com os pés no barro e a cara suja?
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de blog. Me dedico mais às questões sobre escrita, literatura, saúde mental, mas vez ou outra você vai ler um drama desabafo pessoal também. ;)
p.s: Eu tinha prometido que a próxima newsletter seria sobre PESQUISA, mas vocês vão me perdoar e esperar mais um pouquinho por ela.
Sexta passada vi o anúncio da próxima novela da Globo que se chamará Rancho Fundo.
A novela será estrelada por Larissa Bocchino e segundo a sinopse oficial:
Quinota (Larissa Bocchino) é uma jovem sertaneja ingênua e romântica, que leva uma vida simples nas terras áridas do sertão do Cariri, na fictícia cidade interiorana de Lasca Fogo, na Paraíba. Sua vida se transforma quando conhece Marcelo (José Loreto), um homem que vem da fictícia Lapão da Beirada, uma metrópole maior e mais desenvolvida. Esses dois universos sociais tão diferentes colidem quando Marcelo aparece no sertão em busca das valiosas jazidas de pedras turmalina. Em um encontro tão esperado, Quinota e Marcelo se apaixonam, mas um dilema surge quando a mãe de Quinota, a rigorosa Zefa Leonel (Andrea Beltrão), flagra a situação. Em uma cidade onde a honra familiar é inegociável, a reputação de Quinota fica em jogo sem uma união oficial.
O site O Planeta TV completa:
A narrativa da próxima novela das seis promete ser envolvente, destacando-se pelo casamento forçado entre Quinota e Marcelo, desencadeado pelo flagrante de Zefa Leonel, mãe de Quinota. Esse acontecimento é imposto pela necessidade de preservar a honra da família em uma sociedade onde valores tradicionais prevalecem sobre os romances modernos. (Grifos meus)
Vocês conseguem enxergar os problemas?
Vou começar pela imagem de divulgação:
Temos atores brancos e sudestinos, em sua maioria, interpretando pardos e nordestinos. Para conseguir esse efeito, quilos de base de tom escuro na cara dos atores, um brownface básico. A estética segue uma norma quando se trata de novelas cujo cenário é o Nordeste: tons amarronzados ou sépia; brilho na testa simulando suor; manchas no rosto (porque não sabemos usar protetor solar, não é mesmo?); cabelos grudados na cabeça pingando lama ou desgrenhados como se nunca fossem penteados.
Você pode argumentar, caro leitor: “Ah, mas eles querem retratar pessoas pobres”. Não, não é essa a questão. Se fosse, não veríamos a mesma estética em novelas como Renascer (sobre os Coronéis do cacau), Tieta (uma mulher que retorna rica para sua cidade), Velho Chico (a riqueza da fruticultura irrigada), Mar do sertão (a riqueza é a água), entre outras que não lembro agora (não esqueçam, escrevo no calor do momento e não tive tempo de pesquisar muito).
Vejam a diferença quando a história se passa no Rio de Janeiro: tons de pele preservados, roupas coloridas, modernas, despojadas e limpas mesmo no “núcleo pobre”.
O figurino de Rancho Fundo mostra personagens vestidos com roupas em tons terra/marrom que são cores bonitas, mas não se são usadas em trapos sujos ou em retalhos. Parece até que assaltaram a loja dos padres franciscanos (entendedores entenderão).
Procurem por roupas de mulheres nordestinas no Google e se preparem pra chorar ou vejam esse vídeo desta consultora de moda falando sobre os comentários xenofóbicos que ela recebe:
Parece que alguns roteiristas/autores sudestinos acreditam veementemente que vivemos dentro do poema Morte e vida Severina, de João Cabral de Mello Neto: seca, caatinga, sotaque forçado e roupas reaproveitadas de algum filme medíocre.
No que diz respeito aos nomes dos personagens: Quem, pelo amor de Deus se chama “Quinota”? Fosse qualquer nome com dois LL’s e um Y eu até ficaria calada porque antigamente era muito comum, mas segundo o Portal da Transparência, os nomes são bem mais simples (fiz a pesquisa pelo estado da Paraíba porque é o cenário da novela):
“Ah, Dia, mas a lista de é de 2023”.
Okay, então veja essa lista do IBGE da década de 1990:
Não muda muito se colocamos década de 1970 ou 1980.
Quinota, Caridade, Zefa, Tertulinho?! Não dá pra engolir.
Seguimos para a descrição da protagonista: “jovem sertaneja ingênua e romântica” revela uma construção machista, na qual as mulheres nordestinas são bobas, acriançadas, simplórias. Quinota é a representação da apatia diante da vida, coisa que acreditem, não é verossímil de jeito nenhum. Eu posso atestar isso porque sou professora de uma Universidade do interior do sertão pernambucano (UPE Campus Petrolina) que atende garotas e rapazes de povoados pequenos do Vale do São Francisco. Ingenuidade passou longe.
Ainda na sinopse, lemos: “Em uma cidade onde a honra familiar é inegociável , a reputação de Quinota fica em jogo”: claro, porque só existe machismo no Nordeste, né? A gente não vê milhares de mulheres de todas as regiões sendo continuamente julgadas e canceladas na internet por fazerem qualquer coisa que afronte a cultura misógina do nosso querido país.
Lendo uma matéria, descobri outro núcleo estereotipado, o famigerado cabaré:
Passados alguns anos, Deodora (Débora Bloch) sai da prisão após ter sido condenada por matar o seu filho Tertulinho (Renato Góes) e decide mudar de vida. Para isso, ela abre um cabaré e tem a companhia de Cira (Suzy Lopes), Nivalda (Titina Medeiros) e Floro (Leandro Daniel).
Claro! Em contraposição à mocinha boazinha, a Madonna, a gente precisa de quem? Da prostituta, óbvio. É a personagem forte, obstinada e selvagem, mas que só toma controle da sua própria vida se vende o seu corpo e o de outras mulheres.
E eu não vou nem falar do fato que os atores não são nordestinos e a gente corre o risco de ouvir aquele “sotaque nordestino” forçado que ignora que o Nordeste é uma região plural e que cada estado tem, às vezes, mais de um sotaque.
(Atenção: leiam o parágrafo a seguir com um imaginário “sotaque nordestino”)
Olhe, minha gente, eu tô com um ranço fundo desta novela que nem estreou e já me deu tanto desgosto.
Eu prometo para vocês. Prometo mesmo: meu romance (que se passa no sertão do Pernambuco) não vai ter nada disso. E se um dia ele virar novela, série ou coisa que o valha (os anjos digam amém), a minha condição vai ser: nada dessa estética suja e barrenta que a gente vê representando as pessoas nordestinas na televisão brasileira. Ah, e só aceito atores da região. Afinal, a quantidade de gente talentosa que temos não está no gibi. Cangaço Novo que o diga.
É isto. Finalizo meu desabafo e espero que a raiva passe um pouco.
(Quem dera! Eu sei que não vai passar).
Outras prosas:
Recomendo este texto do meu querido Octávio Santiago sobre a ideia de Sertão, a invenção do Nordeste e a consequente Xenofobia que sofremos constantemente;
Ainda sobre o conceito de Nordeste como invenção, recomendo o já clássico A invenção do Nordeste de Durval Muniz de Albuquerque Jr., historiador paraibano e meu ex-orientador do Mestrado na UFRN;
Para quem não leu, eu já escrevi sobre Cangaço Novo também:
Indico essa carta sobre a romantização da pobreza porque é o que acontece também com representações sobre o Nordeste, uma eterna romantização do que é ser nordestino Caindo sempre no estereótipo negativo.
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos em breve,
Com amor e dor de estômago,
Dia Nobre
Palmas palmas palmas. Não vou cansar de aplaudir. Já cansei de passar raiva e sigo passando porque a estética segue patético em como nos retrata. Nunca nem pisou no lugar que pretende retratar, um absurdo completo.
Quando tem núcleo urbano ,geralmente,o eixo é Rio-São Paulo como se o Nordeste não tivesse Cidades ou metrópoles.
A rede globo sempre retrata o sertão nordestino como se a tecnologia não tivesse chegado na Região, mas no Rio Grande do Norte um dos maiores meios de comunicação é o celular/Whatsapp nós sabemos das fofocas das cidades pequenas através do celular