#7 Cangaço Novo, Dinorah e o sertão nas entranhas
O hit de 2023 fala de um Nordeste no qual a pobreza, seca e violência são elementos presentes, mas faz isso de um jeito novo, ao representar mulheres fortes que tomam o protagonismo para si.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de elaborar questões sobre escrita, literatura, saúde mental y otras cositas que me interessam. A ideia é que ela seja quinzenal, mas como sou Aquariana e Borderline, vai depender do meu humor. ;)
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A história podia ser batida. No meio do sertão, na fictícia cidade de Cratará, uma comunidade luta contra os demandos dos políticos locais que roubam a água da população, deixando o gado dos pequenos criadores morrer de sede e fome. Eis que no meio de uma eleição disputada entre líderes locais e uma família poderosa (os Maleiro) aparece Ubaldo (Allan Souza Lima), por acaso, mas não tanto, filho de Amaro Vaqueiro, o maior cangaceiro que a região conheceu e que virou objeto de um culto liderado por Dilvânia (Thainá Duarte) e Zeza (Marcélia Cartaxo), respectivamente, irmã e tia de Ubaldo.
Cangaço Novo, série do Prime Video dirigida por Fábio Mendonça e Aly Muritiba, fala sobre o banditismo social, conceito posto pelo historiador Eric Hobsbawn, em um gênero narrativo conhecido como nordestern, brincando com referências do western norte-americano, mas adaptando os códigos regionais à narrativa.
Ubaldo não foi criado em Cratará. Por circunstâncias terríveis foi levado ainda criança para São Paulo e adotado por um capitão reformado do Exército. Já adulto, desempregado e com o pai doente, Ubaldo decide retornar à terra natal para reclamar uma herança deixada por pai biológico.
Ao chegar na cidade, sem escrúpulos nenhum, Ubaldo tenta roubar a herança que deveria ser dividida entre os três irmãos, mas logo ele descobre que rapadura é doce, mas não é mole. Sua irmã, Dinorah (Alice Carvalho) descobre o plano e o expulsa da cidade. Por uma série de circunstâncias, a partida é adiada e Ubaldo se vê, sem remédio, obrigado a ficar em Cratará e a trabalhar para um bando de assaltantes de bancos.
Como um típico anti-herói, ele é visto com desconfiança por alguns, mas por outros, é visto como um Enviado, o Salvador, a esperança daquela gente sofrida. Foi aí que a história me pegou em dois pontos.
O complexo de salvador sudestino
O primeiro ponto se refere ao embate cultural entre nordeste e sudeste, papo antigo que sempre volta em época de eleições. A série é maravilhosa por diversos fatores: a fotografia, os flashbacks em preto e branco que estabelecem um jogo entre o presente e o passado; as atuações impecáveis e, principalmente, por ter escalado atores nordestinos que não precisaram forjar o falso sotaque caricato que já conhecemos bem.
Mas, para mim, o roteiro correu risco de se perder quando trouxe Ubaldo como o salvador sudestino. Mas Dia, você pode me dizer, Ubaldo nasceu em Cratará, é filho de cangaceiro! Sim, Ubaldo nasceu em Cratará mas não tem referências nordestinas, não foi criado como um nordestino e, inclusive, reproduz preconceitos clássicos, como por exemplo, se achar mais inteligente que todos ou atribuir a brutalidade, a violência e a ignorância a uma característica natural dos nordestinos.
Em uma matéria da Nathalia Duarte e Débora Apolinario na Globo.com, os roteiristas explicaram essa escolha:
No roteiro original escrito por Mariana Bardan e Eduardo Melo, o personagem principal Ubaldo era de Fortaleza, capital do Ceará. No entanto, isso mudou quando a equipe foi para o nordeste começar a fazer pesquisa. Segundo Fábio Mendonça (diretor), todos sentiram um grande impacto ao chegar às locações e isso motivou a mudança. “A gente falou ‘o Ubaldo tem que ser do Sudeste’ porque ele tem que sentir essa diferença dessa forma. Se ele for de Fortaleza, já vai conhecer os códigos e ele já é daqui de alguma maneira”, conta Fábio.
Esse é outro erro: achar que os códigos do litoral são os mesmos do interior ou ver o Nordeste como uma coisa só quando, na verdade, são nove estados bem distintos entre si e com diferenças internas contrastantes. Apesar disso, acredito que essa leitura acrescenta uma camada SE assistirmos com olhos críticos e entendermos que o estranhamento de Ubaldo é consequência, principalmente, de uma xenofobia histórica entranhada na mentalidade dos sudestinos e sulistas e não só pela mera diferença de códigos culturais.
Como nordestina que morou no sudeste, essa questão me incomoda profundamente. Não era raro eu ouvir um: “Você não tem cara de nordestina” ou “Você não tem sotaque de nordestina” (o padrão era sempre o falso acento global) e, talvez, a coisa mais violenta que ouvi certa vez, do tio de uma amiga carioca: “Você sabia que o Brasil é uma locomotiva e o Sudeste precisa carregar os nordestinos porque vocês são um povo preguiçoso?” Depois, nós é que somos ignorantes e brutos, não é?
Neste sentido, é importante notar: Cangaço Novo não é uma série sobre a violência no Nordeste, é uma série sobre a violência no Brasil. Existem milhares de Cratarás espalhados pelo Norte, Centro-Oeste, Sul e Sudeste, mas a xenofobia é uma construção cultural e atinge majoritariamente as regiões Norte e Nordeste. (Vou deixar no final dessa carta uma bibliografia sobre o tema para quem quiser entender melhor a questão histórica.)
A vida é sempre mais leve para os homens cis
O segundo ponto, diz respeto a uma questão de gênero. Ubaldo é um homem cis hétero, lido como branco. Por si só, isso já abre muitas portas. Ele não causa estranhamento na agência bancária, quando tenta resgatar sua herança, sem o consentimento das irmãs; ele transita pela cidade sem ser questionado; ele é acolhido pela comunidade e visto como um potencial salvador, mesmo sem se relacionar com os problemas locais ou entender os códigos regionais.
Se fosse uma mulher, Ubaldo teria essa mesma trajetória?
Não acredito. Lembro, por exemplo, de Tieta do Agreste, personagem da obra de Jorge Amado. Uma mulher que tendo sido expulsa da cidade por exercer sua sexualidade de modo livre, retorna anos depois, rica e poderosa, mas ainda assim é vista de forma negativa. As pessoas só se aproximam dela porque ela tem dinheiro, mas não a respeitam. Ubaldo tem o respeito, mesmo sem nada a oferecer e ainda tendo quase roubado as irmãs.
Mas a série, felizmente, traz mulheres fortes para o centro. A genial Marcélia Cartaxo, interpreta Zeza, tia dos irmãos Vaqueiro, cuidou das meninas na infância quando os pais delas morreram e Ubaldo foi levado pra longe. Ela é uma líder comunitária que atua pressionando a prefeitura em busca de melhorar as condições de vida para a comunidade Cratará.
Dinorah Vaqueiro, interpretada por Alice Carvalho, é uma das integrantes do bando, fato interessante, visto que não há registro da presença de mulheres nos grupos que atuam hoje. A personagem é uma referência clara à Maria Bonita, cangaceira e esposa de Lampião. Há, inclusive, uma cena muito forte entre uma delirante Dinorah e uma Maria Bonita sonhada. No entanto, vale lembrar que a presença de mulheres no cangaço foi bastante diferente do que é romantizado por aí. Com exceção de Maria Bonita que entra no grupo de Lampião por ter se apaixonado por ele, as outras mulheres quase sempre eram vítimas de sequestro e estupro, como é o caso de Dadá, esposa de Corisco.
Por causa de Maria Bonita, um estereotipo muito comum atribuído às mulheres nordestinas, é o de mulher forte e destemida. Dinorah é intensa, impulsiva, explosiva, características vistas com maus olhos porque destitui essa mulher de uma feminilidade supostamente nata, não à toa, a personagem viralizou no X (antigo Twitter) como a “mulher-macho” de Cangaço Novo como se não fosse possível uma mulher ser assertiva e combativa sem assumir um papel masculino.
Isso se reflete, principalmente, na contraposição entre Dinorah e sua irmã Dilvânia que é mais carinhosa, doce e silenciosa. O silêncio, no entanto, é uma marca do trauma que fechou sua garganta. É um silêncio que esconde revolta, dor e muita tristeza. Há, portanto, um equilíbrio na relação das duas, como se uma desse à outra - a força e a doçura -, aquilo que precisam para sobreviver.
A visão patriarcal do gênero que atribui o papel passivo à mulher ganha outras camadas também na personagem vivida por Hermila Guedes, a Leinneanne, esposa do candidato a prefeito de Cratará e amiga de infância de Ubaldo. Ela é uma mulher que exala sensualidade (mas não é objetificada, um grande ponto positivo) e que não teme ceder ao desejo sexual, ao mesmo tempo em que comanda o maior frigorífico da região e também luta ao lado de Zeza por melhorias para Cratará.
Claro que esse protagonismo feminino é consequência do momento em que vivemos e da reivindicação desses lugares de destaque para as mulheres. Ainda temos muito pelo que lutar em termos de protagonismo, nordestino e feminino, mas dá gosto de ver uma série tão boa com personagens verossímeis. Um grande inspiração e uma esperança pro futuro.
Outras prosas
No artigo primoroso A Gênese do Pavoroso Sertão, publicado na revista Piauí, o jornalista Octávio Santiago investiga as origens do preconceito contra a região Nordeste e mostra algumas situações desconfortáveis, para dizer o mínimo, que nordestinas e nordestinos passaram em outras regiões.
Cangaço novo, críticos velhos, artigo de Cefas Carvalho do Portal Saiba Mais, fala sobre as críticas que a série sofreu.
Leitura sobre Xenofobia: Xenofobias, terror y violencia: erótica de la crueldad de Mirta Goldstein, da Lugar Editorial;
Leitura sobre a invenção do Nordeste enquanto região e a fundação dos discursos de ódio: A invenção do nordeste e do nordestino de Lúcia Lippi Oliveira; Um sertão chamado Brasil de Nísia Trindade, publicado pela IUPERJ;
Leitura sobre protagonismo feminino nas lutas políticas: Gênero, patriarcado, violência de Heleieth Saffioti, publicado pela Perseu Abramo.
Terminei uma ótima série do Prime Vídeo chamada As flores perdidas de Alice Hart e em breve vou trazer ela pra cá porque retoma esse tema da violência e do protagonismo feminino que me interessa demais.
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário. Nos vemos na próxima! Um beijo, se cuide.
Dia Nobre
Ano que vem tem eleição na minha cidade aqui no interior do sertão do Ceará. E as ladroagens de água já são assunto latente e que só tem se intensificado nos últimos meses. Não conhecia a série, adorei a escrita e as dicas. Um xero
Estava assistindo antes de minha viagem e deixei o último capítulo pra a volta. Assisti hoje de manhã e logo depois recebi tua newsletter. Concordo com tuas impressões sobre as personagens mulheres.