#11 Casas mofadas e romantização da pobreza
Alguém conta para elas: infiltração não é estilo de decoração, é falta de dinheiro.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de blog. Me dedico mais às questões sobre escrita, literatura, saúde mental, mas vez ou outra você vai ler um desabafo bem pessoal também. ;)
Tudo começou com uma matéria que vi no meu feed do Instagram:
Eu achei muito bizarro alguém que nasceu bem e teve todas as oportunidades na vida, achar que a deterioração de uma casa no interior de Alagoas tem realmente a ver com uma proposta de decoração. Para mim, era o auge da alienação. Até eu ver este vídeo dessa outra querida aqui:
Eu fiquei com isso na minha cabeça por semanas.
Lembrei da minha casa da infância/adolescência de paredes infiltradas, goteiras, pé direito alto cheio de teias de aranha (que mamãe me obrigava a limpar com uma vassoura de cabo bem comprido. até hoje tenho pavor de aranhas), piso de cimento queimado (ainda não era moda), banheiro mal ajambrado e tantos outros pequenos detalhes que contavam da nossa pobreza.
Lembro bem da festa quando minha avó juntou dinheiro o suficiente para colocar cerâmica no chão e forro de gesso no teto. Ela sempre teve fobia de lagartixa, mas não tinha escolha a não ser conviver com os bichos que passeavam pelo teto e paredes da casa. Quando as coisas melhoraram um pouco mais, ela passou a renovar a pintura da casa sempre em dezembro, antes do Natal, e dava pra ver a felicidade naqueles olhinhos de mar que ela tinha.
Então, quando eu vejo alguém romantizando infiltrações e mofo falando que isso é decoração ou que “conta da história da casa”, a minha ação imediata é revirar os olhos até a parte detrás da cabeça e pensar: como existe tanta gente ignorante no mundo? Como é possível que a pessoa não consiga sair do seu próprio umbigo, por um segundo que seja, e imaginar que se a casa está daquele jeito é porque a pessoa não tem condições de cuidar. Que nenhum ser humano gosta realmente de viver com mofo, goteiras e buracos na parede?
Fiquei pensando muito nessas marcas de privação que carrego e como isso se reflete no cuidado com a minha casa (algo quase obsessivo) e com minha saúde, já que também fui muito negligenciada nesse ponto.
Me deixa doente ver que o que essas queridas chamam de “decoração” é simplesmente falta de dinheiro. Eu também morei na Itália no doutorado e estive em casas arruinadas porque os donos não tinham condições de mantê-las e alugavam bem mais barato, então eu sei do que estou falando.
Simplicidade ou romantização da pobreza?
Desde que se popularizou a ideia de “empreendedorismo”, o conceito é usado para legitimar a pobreza em diversos níveis. Geralmente, se tomam exemplos bem extremos para mostrar que apesar de todas as adversidades, a pessoa conseguiu se sair bem na vida, tipo isso aqui:
A internet está cheia de “histórias de superação” como essa utilizadas para justificar outra ideia mais complicada ainda: a de meritocracia, baseada na acepção de que se a gente se esforça, a gente pode conseguir ascender socialmente, melhorar de vida. O que não falam é que, na realidade, não precisamos só de esforço, mas também de oportunidades. Resumir esse discurso a “esforço” é uma violência sem tamanho contra os mais pobres. É ignorar o impacto da colonização sobre os fatores socioeconômicos e as exclusões de raça e gênero que formam nossa sociedade. Uma Rui Barbosa ou uma Linzmeyer não partem do mesmo lugar que uma Silva.
Ora, a minha própria história é de superação. Aí você pode perguntar, mas então, Dia, qual o problema? O problema é que ninguém gosta de ser pobre. Eu odiava não ter dinheiro para coisas básicas como comida, material escolar, dentista; eu abominava dormir em algo que estava longe de ser uma cama (era um bloco de concreto com um colchão fino por cima), de ouvir ratos e baratas caminhando pelo teto da casa e morrer de medo que algum desses bichos caissem em cima de mim. Eu trocaria fácil minha história de superação para nascer de novo como herdeira.
Superar a pobreza não é algo bonito. É doloroso, é difícil, causa muitos danos à nossa saúde mental e física. Um desses medos, inclusive, é o medo de voltar a ser pobre, o que nos obriga a trabalhar feito doidas para manter o mínimo de conforto.
Eu detesto falar sobre isso, não por sentir vergonha, longe disso, mas por saber que só estou falando sobre isso porque tem gente que não entende o que é ser pobre em um país como o Brasil (mas isso é papo pra outro momento).
Hoje eu tenho uma vida confortável e sei muito bem que simplicidade não é sinônimo de pobreza:
Simplicidade é aquilo que é desprovido de complicação; aquilo que é fácil.
A vida na pobreza é tudo, menos simples. A gente quebra a cabeça pra saber como fazer o dinheiro render até o final do mês, para saber como vai pagar os estudos ou comprar uma roupa decente para procurar emprego. A gente acorda (quando dorme) três horas antes de todo mundo para pegar um ônibus lotado, às vezes, dois. É muito esforço para atingir o mínimo ou você acha que é uma decisão simples ter que escolher entre vestir e comer?
Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar. - Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo.
Dinheiro traz felicidade, sim!
A romantização da pobreza só serve para alienar politicamente os individuos que são reféns dela, serve para manter desigualdades, para aumentar a distância entre as classes sociais, para justificar a falta de investimento do estado e de políticas públicas que tiram essa população da pobreza.
Ao contrário do que muita gente acha, eu acredito que dinheiro traz sim, felicidade. Claro, meu conceito de felicidade não é nada ingênuo. Aqui não tem espaço para Julie Andrews cantando em uma colina enquanto cuida de sete crianças. Dinheiro compra acesso à justiça, saúde, alimentação, lazer y muchas cosas más. E para mim, hoje, ter acesso a bens e serviços é sinônimo de felicidade. Ah, mas e o amor? Meu bem, a gente ama muito melhor quando tem dinheiro, acredite.
Só discorda quem não viveu a escassez no sangue.
Outras prosas
Antes de qualquer coisa: no mês de dezembro vou ministrar uma oficina sobre os usos da memória na escrita contemporânea pela Balada Literária. Serão três dias consecutivos de aula com uma bibliografia bem rica e fundamentada. Um dos conceitos que iremos trabalhar é justamente o de trauma a partir de registros pessoais como diários e cadernos. Deem uma olhada no programa completo e se gostarem, se inscrevam!
Aqui tem um post interessante sobre Síndrome da Escassez;
A Clara Fagundes fez um post legal sobre romantização da pobreza na mídia;
Romantizar esforços bem-sucedidos perpetua a desigualdade é um texto interessante sobre o assunto.
Indicações de leitura:
A devolvida da italiana Donatella di Pietrantonio: uma criança filha de pais pobres que foi dada a um parente rico e depois devolvida à família pobre;
Quarto de despejo e Casa de Alvenaria, ambos da escritora mineira Carolina Maria de Jesus. O primeiro é um diário da vida da autora na favela e o segundo fala de certa ascensão social que ela teve após se tornar autora;
Os tais caquinhos da escritora cearense Natércia Pontes: um romance sobre a falta em vários sentidos. Uma casa feita de caixas de papelão, bandejas de isopor, cacarecos, baratas, cupins, muriçocas, poeira, copos sujos e aonde o pai acha bonito sentir fome;
Ninguém quis ver da escritora Bruna Mitrano: um livro de poemas que narra a carência e a vulnerabilidade em todos os sentidos.
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos na próxima,
Um beijo, se cuide.
Dia Nobre
Muito bom, Dia! Romantizar a pobreza, especialmente quando suas dores não foram sentidas na pele e no estômago, além de tudo, é falta de caráter. Fico tão tristre quando vejo jovens (meninos e meninas) empolgados com o "empreendedorismo" e "meritocracia", duas falácias para conter pobres na miséria. A maioria dos empreendedores de hoje serão miséráveis no futuro. Abraço querida!
Dinheiro para a maioria dos brasileiros é sinônimo de felicidade porque oportuniza uma vida com dignidade.
Mofo na parede significa que aquela pessoa foi despojada da luz do sol. Isso é muito violento.
Nunca passei privação material na vida, tive meus privilégios, mas minha mãe, que teve uma infância pobre, sempre lembrava que tudo aquilo que a gente tinha acesso e achava normal um número imenso de pessoas não tinha.
Sabe uma coisa que ela odiava e que muita gente acha maravilhoso? Tempestades com raios e trovões. Ela nasceu em um interior no sul da Bahia e quando chovia, o rio próximo transbordava, casas eram destruídas pelas enxurradas e pessoas e animais morriam atingidos por raios. Quando tinha tempestade aqui em Salvador (é raro, mas acontece), já morando em apartamento com uma boa estrutura e seguro, ela se cobria toda e a casa ficava em completo silêncio em respeito ao trauma dela. A gente só voltava a falar quando o temporal passava.
obrigada pelo texto.