#21 Coragem, coração!
Esta newsletter fala sobre relacionamentos tóxicos. Caso seja um gatilho para você, sugiro que não leia.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de blog. Me dedico mais às questões sobre escrita, literatura, saúde mental, mas vez ou outra você vai ler um drama desabafo pessoal também.
Hoje eu falo sobre um trauma.
Vou começar com uma história:
Um menino está em sua cama no meio da noite. É tarde e todos dormem. Ele está sozinho na escuridão. Não consegue dormir. As sombras na parede, reflexos da luz artificial do lado de fora da casa criam pesadelos domésticos. O menino chora. Sente falta do pai. As mãos pequeninas tremem no escuro. Há medo e culpa naquelas mãozinhas. Ele foi ensinado a carregar essa culpa desde muito pequeno e cuida dela como um bichinho de estimação. Sente que não pode deixá-la morrer.
Naquela noite, no entanto, decide sair do quarto. Desce as escadas e vê a luz do quarto da avó acesa. Sentada em uma cadeira de balanço, ela crocheta uma flor vermelha e nota pelo canto do olho, a figura pequena encostada na porta.
“Não conseguiu dormir, meu filho?”
“Não, vó.”
“Então, venha aqui que vou te ensinar a fazer crochê.”
A avó apoia o menino sobre o colo e o ensina a segurar a agulha de gancho entre os dedos, mas os dedos escorregam nos fios coloridos pesando sobre a malha. Ela sabe a dor que o menino carrega. Então, o toma pelo braço, lhe prepara um banho, veste o seu pijama, passa alfazema naquelas mãozinhas e reza com ele uma oração: “Em paz me deitarei e dormirei porque tu Senhor, me protege.”
O sono vem e o menino dorme esquecido da falta.
Anos depois, o menino é um jovem homem, a avó já não existe, mas o medo do escuro e a culpa permanecem ali, nas mãos dele. Ele sofre por amor. O seu primeiro amor, ele me conta. Ele ainda não sabe que não foi amor porque não foi recíproco e esse é um sentimento que só pode existir em reciprocidade.
Ele revê suas memórias e acredita que poderia ter feito tudo diferente. Na realidade, ele ainda está tentando entender o que aconteceu, como fazemos quando arrancamos as casquinhas de ferida só para ver o sangue jorrando de novo.
A violência ganha o espaço dos pesadelos infantis. Ele se sente bloqueado, sem caminho. Ele não lembra que há uma saída e que basta abrir a porta e descer as escadas.
Reflexões sobre o trauma
Eu percebi, um pouco tarde, talvez, que quando não recebemos afeto na infância, fica difícil criar vínculos. Tendemos a reproduzir relações tóxicas e nocivas; a procurar amor onde não existe; a gente fica carente e vulnerável. Acreditamos que a violência que recebemos (seja verbal ou física) é normal.
“Faz parte da personalidade dele/dela”
“Ele/ela é assim mesmo”
“Quando ele/ela está bem, é uma pessoa diferente.”
A gente crê que merece a violência. Que a culpa é nossa, afinal, algo de errado eu fiz. Quem sabe, eu respondi uma mensagem que não devia responder. Eu sorri para uma colega no trabalho ou na universidade. Eu usei uma roupa que a pessoa não gostava.
Nos contentamos com migalhas de atenção, sem perceber que a boca que beija é a mesma que escarra. Nos colocamos em risco: transamos sem camisinha, passamos noites bebendo ou fumamos maços e maços de cigarros.
Quando nada funciona, a gente se isola ainda mais porque “não temos mais o poder esmagador daquelas mãos que tanto amávamos.”* Quando vivemos um relacionamento abusivo somos tomados pelo desejo de destruição porque é mais fácil querer morrer do que entender que aquela pessoa que amamos não nos quer.
Tem gente que não gosta de nós, mas gosta de nos ter atados e, assim, nos faz acreditar que precisamos daquela amarra. Não precisamos.
Eu olho para o jovem homem diante de mim e vejo o menino. Com medo, chorando no escuro. Eu sinto muito por ele, por mim e por todas as pessoas que já passaram por relacionamentos abusivos. Eu digo muitas coisas para ele porque tenho esse desejo de resgatá-lo.
Então, percebo que não posso ser um bote salva-vidas. Que sou uma pessoa, não uma coisa. Que também tenho sentimentos. Eu sinto muito, mas o respeito. Lembro que há coisas que só nós mesmos podemos resolver.
Você não pode salvar as pessoas. Você só pode amá-las.
Anaïs Nin, Diários.
Não acredito que o “tempo cura tudo”, acredito que sim, com o passar dele, vamos abrindo espaços para outras coisas, outros afetos, outras experiências. Acredito que desapegamos do sofrimento e aprendemos a nos valorizar mais.
Mais cedo ou mais tarde, a gente lembra que tudo o que precisamos é enfrentar o medo, descer as escadas, abrir outra porta, tomar um banho, passar alfazema no corpo e receber o colo de alguém que nos ama.
Eu digo para ele: aqui não falta colo, nem alfazema. O que ele vai escolher, está fora do meu controle. Eu só posso sussurrar baixinho, feito uma oração: Coragem, coração!
*Boca de cachorro louco, Karina Dantas.
Outras prosas
Em maio li um bocado de poesia e fiz um reels mostrando os livros. Deem uma olhada porque tem muita coisa boa, a maioria de autoras estreantes, independentes e contemporâneas.
No início deste mês aconteceu uma coisa louca. A Revista TPM acabou compartilhando uma frase minha em um post sem me dar os devidos créditos, então, depois de manifestar o meu descontentamento, a editora da revista me respondeu pedindo desculpas, colocou os créditos e me convidou para fazer uma pauta. Escolhi falar sobre apagamento feminino a partir de uma história bizarra que aconteceu comigo em 2016. O post saiu na sexta e vocês podem ler aqui.
Já contei aqui que vou ministrar uma oficina sobre sonhos e escrita, né? Dia 15 de junho vou fazer o sorteio de uma vaga gratuita, basta preencher o formulário que está aqui:
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos em breve,
Com amor e coragem,
Dia Nobre
Que pancada! Em breve vai fazer um ano que a minha ex terminou comigo. Hoje, consigo enxergar a toxicidade do relacionamento e o ciclo de miséria que minha vida se tornou principalmente no final. Apesar de tudo, eu ainda tentei manter contato e ela me excluiu completamente da vida dela, o que só botou mais sal na ferida aberta. Esse ano eu voltei e me abrir um pouco mais pro mundo depois de um tempo machucada, mas não foi sem carregar cicatrizes profundas. Ainda tenho pesadelos com ela, tão reais que chegam a me acordar ofegante. Mas é isso, a gente vai tentando viver e nos acolher na medida do possível.
Uau!