#22 Eles têm a palavra
Em tempos em que nosso corpo volta à pauta com um Projeto de Lei que visa acabar de vez com nossos direitos reprodutivos, trago uma reflexão sobre o Conto da Aia, de Margaret Atwood.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de blog. Me dedico mais às questões sobre escrita, literatura, saúde mental, mas vez ou outra você vai ler um drama desabafo pessoal também.
Hoje eu trago um artigo sobre literatura. <3
Gostaria de acreditar que isso é uma história que estou contando. Preciso acreditar nisso. Tenho que acreditar nisso. Aquelas que conseguem acreditar que essas histórias são apenas histórias têm chances melhores. Se for uma história que eu estou contando, então tenho controle sobre o final. Então haverá um final, para a história, e a vida real virá depois dele […] Se é apenas uma história, torna-se menos assustador (ATWOOD, 2017, 52; 175).
No romance distópico The Handmaid’s Tale (1984) da escritora canadense Margaret Atwood, a narradora, a aia Offred1 conta a história da sua experiência durante o governo da República de Gilead, uma ditadura teocrática instalada no território estadunidense, provavelmente em finais do século XX, cujos governantes se nomeiam “Os filhos de Jacob” em alusão ao personagem bíblico do Antigo Testamento.
Pouco sabemos sobre ela, exceto que era caucasiana, cabelos castanhos, havia sido casada, gerado uma filha e havia acabado de completar 30 anos quando foi recrutada para a função de Aia. Mesmo seu nome é uma incógnita, embora haja um indício de que se chamasse June, único nome citado por ela no início da narrativa, mas que não se repete no livro.
Nesta sociedade, fundada em algum lugar dos Estados Unidos, aparentemente no que teria sido o estado de Massachussets, Nova Inglaterra, um grupo radical religioso aplicou um golpe de estado após ataques feitos à Casa Branca e ao Pentágono. Os ataques atribuídos aos extremistas muçulmanos, mataram o Presidente e maioria do Congresso. Aproveitando o clima de medo, os Filhos de Jacob tomaram o poder, suspenderam a Constituição e recriaram uma comunidade patriarcal, baseada nas raízes puritanas do século XVII, na qual todos os direitos femininos foram excluídos.
Tomando como base doutrinária o Velho Testamento, especialmente, o Gênesis, a sociedade de Gilead era uma comunidade caucasiana, masculina, cis gênero e cristã. Pessoas não brancas, (Filhos de Cam, Gen 10:6), homossexuais (Traidores de Gênero) e não cristãos eram punidos com a forca ou com o degredo para as Colônias.2
As mulheres, por sua vez, foram divididas em seis grupos por ordem de hierarquia: Tias, Esposas, Marthas, Aias, Econoesposas e Jezebels. Cada grupo possuía um código de vestimenta, função e limites diversos dentro da sociedade, à exceção das Não mulheres — anciãs, deficientes físicos ou mentais, ou mulheres que se recusaram a servir ao Estado –, estas eram enviadas diretamente para as Colônias e não possuíam parte na nova sociedade:
Não sendo mulher, é-se outra coisa, uma perigosa presença liminar, fugidia, que deve, por isso, ser banida (LEMOS, 2012, 3).
Na história, as Tias vestem castanho (estilo militar) e são responsáveis pela “educação” das Aias; as Esposas, vestem azul e são mulheres pertencentes à elite, casadas com os Comandantes que tomaram o poder; as Aias, vestem vermelho e sua função é engravidar para dar filhos às Esposas e aos Comandantes infertéis; As Marthas, vestem verde e são cozinheiras e empregadas domésticas nas casas dos Comandantes; as Econoesposas, usam roupas listradas de azul, verde e vermelho e são mulheres de baixa classe social, mas que conseguiram escapar do crivo de exclusão do regime de Gilead; as Jezebels vestem adornos e adereços que lembram as dançarinas de cabaré das décadas de 1920 e são forçadas a se prostituirem em casas clandestinas frequentadas pelos Comandantes. A opressão que as mulheres sofreram através da divisão social/funcional gerou uma extrema rivalidade entre elas, e, ao mesmo tempo em que eram unidas pela submissão, eram separadas pela disputa de pequenos poderes.
No livro, Offred lamenta que as mulheres não somente não empatizam, como também sentem prazer em afrontarem umas às outras. A ideia da rivalidade feminina é um dispositivo de poder amplamente utilizado em sociedades patriarcais. Dito de maneira distinta, a “dominação masculina” não existiria per se, mas em um jogo de relações de poder, no qual as mulheres são levadas a enxergar umas às outras enquanto concorrentes e/ou rivais. A dominação se daria então, através da instituição de uma crença (estratégia de poder) que gera práticas de vigilância de si e do(a) outro(a), mas que gera também táticas de resistência.
Assim, não há um poder social unificado e direto, mas micropoderes, no sentido proposto por Michel Foucault. O gênero, aparece na narrativa com uma função de legitimação, pois ratifica a divisão dos espaços, nos quais, a mulher possui funções ligadas ao lar e ao casamento, enquanto ao homem compete o domínio público, assim “a diferença sexual foi concebida em termos da dominação e do controle das mulheres” (SCOTT, 1995, 91) mas também em função da ausência ou do desestímulo à sororidade que, conforme bell hooks é a solidariedade e o comprometimento compartilhado entre as mulheres (hooks, 2019,36).
Na lógica patriarcal, a mulher não é dona da própria sexualidade e esta, por sua vez, constitui o corpo da mulher ao ordenar-lhe inteiramente para as funções de reprodução. O corpo foi educado para reproduzir, para manter-se calmo e submisso. Este é um discurso inculcado em nossa sociedade, seja de ordem religiosa, jurídica ou médica.
São discursos que se esquecem do próprio ato que lhes deu origem e que se reproduzem muitas vezes no discurso das próprias mulheres que assimilam o papel da mãe e esposa resignada.3 Neste sentido, a sociedade gileadeana se funda sobre uma base antiga forjada em jogos de dominação e submissão que fizeram pesar os mecanismos de proibição sobre o corpo da mulher e nas novas regras impostas no falar, ou melhor, naquilo que não se deveria falar. A priori, os Filhos de Jacob justificam a necessidade de remodelação da sociedade devido ao baixo índice de fertilidade causado por fatores como a poluição, epidemias de doenças sexualmente transmissíveis como a Aids e Sífilis, além de vazamentos de armas químicas e biológicas e lixo tóxico lançado nos esgotos.
No entanto, o declínio demográfico é atribuído, principalmente, à liberdade sexual feminina no que diz respeito à realização de abortos, uso de anticoncepcionais, e, mesmo à própria escolha de não querer gerar filhos: “Éramos uma sociedade que estava morrendo, dizia Tia Lydia, de um excesso de escolhas” (ATWOOD, 2017, 36). Qualquer semelhança com as propostas do atual presidente e da representante do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, não é mera coincidência.
Não coincidentemente, as mulheres são usadas como ferramentas essenciais na construção da base teocrática fundamental no discurso dos Filhos de Jacob. Entre elas, destaca-se Serena Joy, esposa do Comandante Fred Waterford. Serena, antes do golpe empreendido por Gilead, escrevia livros e dava palestras onde enfatizava a necessidade de retorno às raízes morais, o combate à concupiscência e ao sexo desenfreado, e assumia como objetivo restaurar um “papel tradicional das mulheres”, supostamente mais autêntico:
Seus discursos eram sobre a santidade do lar, sobre como as mulheres deveriam ficar em casa. […] observávamos seu cabelo duro de laquê e sua histeria, e as lágrimas que ela ainda conseguia produzir sempre que queria, e o rímel negro tingindo suas faces […] ela não faz mais discursos. Tornou-se incapaz de falar. Fica em casa, mas isso não parece lhe fazer bem. Como deve estar furiosa, agora que suas palavras foram levadas a sério (ATWOOD, 2017, p. 58).
É através de Offred, que podemos “ouvir os ecos de um passado” que, ainda
ficcional, pouco tem de original, uma vez que é inspirado em eventos históricos do século XX (a construção do Estado Islâmico; a guerra fria; o extermínio de judeus, negros e gays na Alemanha nazista; os testes nucleares que mataram milhares de pessoas em Hiroshima e Nagasaki). As sementes de um futuro populoso e feliz, espelho das imagens impressas naqueles folhetos produzidos pelas Testemunhas de Jeová, são cultivadas em Gilead através da violência e do medo. A existência das Aias, enquanto reprodutoras, “úteros de duas pernas”, é justificada pela via religiosa através da referência bíblica da história de Jacó e Abraão que tomaram servas para reproduzir, diante da infertilidade de suas Esposas (Gn 30:1–3), mas também pelo determinismo biológico que exclui as experiências subjetivas e as construções culturais:
“O homem fode a mulher; sujeito, verbo e objeto […] A fonte das relações desiguais entre os sexos está, no fim das contas, nas relações desiguais entre os sexos” (SCOTT, 1995, 77).
A primeira ação da ditadura teocrática de Gilead foi, assim, suspender todos os direitos e funções públicas femininas. As mulheres têm suas contas bancárias bloqueadas, perdem seus empregos e passam por uma espécie de triagem, a fim de serem classificadas em férteis e inférteis, embora a palavra estéril passe a ser uma palavra proibida, principalmente, quando referida aos homens: “Estéril. Isso é uma coisa que não existe mais, um homem estéril não existe, não oficialmente. Existem apenas mulheres que são fecundas e mulheres que são estéreis, essa é a lei” (ATWOOD, 2017, p. 75).
Ao separar as mulheres em grupos que possuem uma hierarquia própria, o Estado impossibilita o desenvolvimento da empatia diante da condição do(a) outro(a): “sociedades distópicas, consumidas e controladas por dogmas regressivos, aparecem constantemente estáticas: fundado em coerção e estruturas rígidas, o sistema resiste às mudanças e se torna preso em paralisia” (MALAK, 2004, 83).
Assim, as Tias, anciãs da elite, eram responsáveis pela educação das Aias, estas também submetidas às Esposas, casadas com os Comandantes; as Marthas, mulheres mais velhas e inférteis que cumpriam funções domésticas, eram subordinadas às Esposas e estas últimas aos seus maridos; As Econoesposas, mulheres de classe baixa, sem educação formal, e, portanto, sem competência para ascender socialmente acumulavam diversas funções públicas (limpeza de detritos, lavagem de roupas, costureiras) eram malvistas por todas as outras; e, por último, as ‘Jezebel’, mulheres que não serviam para as funções de Aia ou Esposa, mas que eram jovens e bonitas o suficiente para serem usadas como forma de entretenimento. Estas, viviam reclusas em um bordel chamado Casa de Jezebel e sua existência era ignorada pelas outras mulheres.
Presas à nova lei, as Aias só podiam conhecer a sua função e, portanto, são
impedidas de socializar com as outras mulheres. A falta de relações sociais entre as mulheres cria uma espécie de afasia, na qual, a própria identidade feminina se perde. É neste contexto que Offred, narradora principal, reflete sobre sua condição de coisa e não de ser humano:
Aquilo a que chamo de mim mesma é uma coisa que tenho que compor, como se compõe um discurso. O que tenho de apresentar agora é uma coisa feita, não algo nascido. […] Porque as mulheres não precisam provar umas às outras que são mulheres? […] Somos úteros de duas pernas, apenas isso: receptáculos sagrados, cálices ambulantes […] Pertences da casa: isso é o que somos. (ATWOOD, 2017, pp. 82; 89; 99; 165).
O espaço do controle é o espaço do corpo, da liberdade, da capacidade de escolha, portanto, as táticas de subversão também se desenrolam nesses espaços. É neste contexto, que Offred “aceita” tornar-se “amante” de seu Comandante, e passa a encontrar-se com ele tarde da noite em seu escritório. A princípio, ele somente requer sua companhia, e ela se utiliza disso para ter acesso a informações que não lhe eram permitidas. O dominante “tem uma coisa que não temos, tem a palavra” (ATWOOD, 2017, 109).
Em dado momento, Offred descobre uma inscrição gravada na parte interna do armário de roupas, que teria sido feita, possivelmente, pela Aia que lhe antecedeu. A inscrição, pantomima do latim eclesiástico, dizia: Nolite te bastardes carborundorum (em uma tradução livre: “Não deixe que os bastardos te reduzam à cinzas”) e foi copiada de um dos livros do Comandante indicando que aquela Aia também havia sido obrigada a sujeitar-se ao poder do Comandante, embora acabe por subverter a ordem, uma vez que se suicida, o que neste caso, se apresenta como uma forma de resistência.
Offred permanece durante três anos na casa do Comandante Fred Waterford, e, nesse período, após várias cerimônias de reprodução, finalmente ela se descobre grávida, mas do seu outro amante, o motorista Nick que atua como um agente duplo: é um Olho a serviço do regime e um agente infiltrado do grupo de resistência Mayday, que se esforçava por construir rotas de fugas femininas para as mulheres exploradas pelo sistema.
Aqui é possível ver que as táticas empreendidas para subverter a ordem estabelecida são sutis e, mesmo quando violentas, no caso do suicídio, por exemplo, surtem efeitos que nos fazem repensar as relações de poder nas sociedades. São os pequenos poderes que rompem com a ordem estabelecida.
No final, Offred junta-se à resistência, “embarca na escuridão ali dentro, ou então na luz” (ATWOOD, 2017, 347), e consegue gravar sua história em fitas cassete que, mais tarde, são encontradas em uma casa abandonada no estado do Maine. Em uma última súplica, ela que repetidamente ao longo do texto diz que não queria estar contando essa história, apela à sensibilidade do leitor:
[…] Isso é uma reconstrução. […] É também uma história que estou contando, em minha cabeça, à medida que avanço. Conto, em vez de escrever, porque não tenho nada com que escrever, e de todo modo, escrever é proibido. Mas se for uma história, mesmo em minha cabeça, devo estar contando-a para alguém. Você não conta uma história apenas para si mesma. Sempre existe alguma outra pessoa. Mesmo quando não há ninguém. Uma história é como uma carta. Caro você, direi. Apenas você, sem nome. Acrescentar um nome, acrescenta você ao mundo real, que é mais arriscado, mais perigoso: quem sabe quais serão as probabilidades lá fora de sobrevivência, da sua sobrevivência? Eu direi você, você, como uma velha canção de amor. [….] Não quero estar contando esta história [….] Contexto é tudo. (ATWOOD, 2017, 52; 163;
174, 322)]
Essa história que Offred não quer contar é a mesma que nós, mulheres, esperamos parar de contar um dia. Uma história off red, para fazer um trocadilho com o nome opressor da personagem. Uma História, na qual Clio não seja apenas um adorno, uma história cujas páginas não estejam cobertas pelo nosso sangue.
BIBLIOGRAFIA:
ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. São Paulo: Rocco, 2017.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
LEMOS, Márcia. Vestir Identidades: uma leitura de The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood. E-topia: Revista Electronocia de Estudos sobre a Utopia, n. 13(2012) ISSN: 1645–958X.
MALAK, Amin. Atwood in the Dystopian Tradition in BLOOM, Harold. Bloom’s Guides: The Handmaid’s Tale. New York: Chelsea House, 2004.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e realidade. 20(2):71–99, jul/dez, 1995.
As aias eram nomeadas com a preposição “Of”, do inglês, “de” e, em seguida, com o sobrenome do Comandante ao qual estavam submetidas, no caso Offred era a aia de Fred.
Uma espécie de campo de concentração, no qual os condenados eram obrigados a trabalhar com material radioativo ou na agricultura, conforme a gravidade da pena.
É possível identificar essas características no movimento contemporâneo chamado tradwife, no qual, mulheres se submetem a um retorno ao espaço privado, embora este seja agora veiculado através da internet, no sentido de manterem funções exclusivamente domésticas.
Outras prosas:
Restam poucas vagas para a oficina que vou ministrar na Balada Literária: Sonhar a Escrita: transformando experiências oníricas em texto. As aulas acontecerão entre 8 e 12 de julho, serão online e ficarão gravadas para quem quiser assistir depois.
Semana que vem, meu livro “Incêndios da Alma” entra em pré-venda. Estou ansiosa para mostrar como ficou a capa e o projeto gráfico (adianto que ficou tudo lindo!!!). Por enquanto, deixo vocês com uma frase sobre o livro escrita pela maravilhosa Bárbara Carine:
“Um convite à reflexão acerca da importância de mulheres negras nas nossas revoluções sociais cotidianas, inclusive aquelas oriundas da fé. Incêndios da Alma é uma leitura instigante que nos prende, encanta e encoraja do início ao fim.” - Bárbara Carine, autora de Como ser um educador antirracista e Querido estudante negro.”
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos em breve,
Que os ventos de julho nos sejam favoráveis.
Dia Nobre
o mais assustador é ver que não estamos tão distante quanto pensávamos deste mundo distópico.
Que texto rico, Dia! Obrigada por compartilhar com a gente.
Livro e série: dolorosos demais. Nossa realidade tão brutal e nada ficcional.