#5 Escrita acadêmica e escrita ficcional
Uma carta para Júlia sobre as dores e delícias da carreira acadêmica.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de elaborar questões sobre escrita, literatura e saúde mental. A ideia é que ela seja quinzenal, mas como sou Aquariana e Borderline, vai depender do meu humor. ;)
No dia 7 de setembro deste ano, abri meu e-mail e encontrei uma mensagem inusitada. Júlia, uma jovem escritora baiana que acabou de se formar em psicologia me pergunta: “Dia, como fazer ciência?”
Vou reproduzir abaixo alguns trechos (com autorização dela):
[…] os limites entre literatura e ciência me deixam assustada. a princípio, eu via a distinção entre uma coisa e outra com uma função puramente hierárquica: a ciência e a filosofia teriam compromisso com a verdade, ao passo que a arte não, e a literatura seria, então, um tipo de texto menor, impreciso e inútil. eu gosto de como faço literatura, mas não sei fazer ciência. escrevo como uma ensaísta ou como uma romancista. […] sinto que meu texto acadêmico é excessivamente literário, impreciso e confuso, mas eu não gosto de escrever sem imprimir marcas. como construir um estilo de escrita científico? necessito não só aprender a me adaptar à forma científica, mas aprender a adaptá-la a mim. […]
(o negrito é meu)
Apesar da pergunta inicial ser “como fazer ciência”, creio que ganhamos mais se pensarmos em como escrever academicamente ou como separar a escrita (o estilo?) acadêmica da literária (se é que isso é possível). Então, a prosa desta semana é uma resposta (?) à Júlia e aos estudantes que acompanho na Universidade como orientadora ou professora.
Querida Júlia e estudantes,
Um primeiro ponto: quando eu tinha a idade de vocês, o futuro também me angustiava demasiado. O que eu queria não coincidia com o que eu devia fazer. Eu queria ser escritora, mas antes de tudo, eu precisava sobreviver.
Como vocês, também entrei na universidade muito jovem e via ali uma possibilidade de escapar do destino de muitas meninas e meninos que nascem nas margens, já estigmatizados pela pobreza, região, gênero ou raça. Eu sei que vocês sabem o peso que precisamos carregar desde sempre. Minha avó que nunca aprendeu a ler ou escrever, dizia que só havia um meio de pessoas pobres vencerem na vida e era pelos estudos. Então, entendo bem esse olhar de espanto diante da escrita acadêmica que, tradicionalmente, tem um lugar bem demarcado: branco-hetero-cis-proprietário-cristão.
Durante muito tempo, este lugar nos foi negado. Pretos, pobres, mulheres e pessoas trans nordestines fomos, não só apagados da História enquanto sujeitos e sujeitas históricas, mas também tivemos o acesso dificultado aos lugares de produção de saber que se situavam (e ainda se situam, embora menos) na região sudeste-sul. Creio que isso se reflete também na forma como nos cobramos hoje, na nossa ansiedade e na síndrome de impostora.
Em contrapartida, e, paradoxalmente, os grupos marginalizados possuem os maiores desempenhos nas suas carreiras (quando finalmente temos acesso), por exemplo: Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) desde 2021, o Nordeste (maioria da população de negros do país) leva o título de destaque no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) com os melhores desempenhos nas provas. Os estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba são, segundo o mesmo instituto líderes nos índices de educação. Ano passado, 2022, completou-se 10 anos da implantação da Lei de Cotas e o sucesso dessa política afirmativa é inquestionável. Dados do Fórum de Discussão sobre a Lei de Cotas da ANPOCS revelam que a proporção de pretos, pardos e indígenas matriculados em instituições de ensino público, aumentou de 10% no início dos anos 1990 para 52% nas duas primeiras décadas do século 21, parece pouco, mas não é.
No que diz respeito ao gênero, segundo o IBGE de 2018, as mulheres têm os maiores níveis de escolaridade e são as que mais se destacam, embora ainda ganhem os menores salários. Eu não quero encher esse texto de estatísticas e gráficos, pois elas são fáceis de encontrar nos sites oficiais do governo.
O meu ponto é: nós nos cobrarmos mais por sabermos que os espaços são reduzidos quando em comparação com as oportunidades que existem para o público padrão do sudeste, leia-se, homens cis brancos.
Ciência e arte
Um segundo ponto: em termos de escrita, eu não vejo hierarquia entre a escrita acadêmica e a ficcional. Ambas possuem método, valor e função social. Para mim, essa é uma discussão importante que envolve o linguistic turn da virada do século XX que não dá pra resumir em um parágrafo e não é meu objetivo me aprofundar nisso com esse texto que tem um caráter mais pessoal e opinativo.
Júlia, eu passei por coisa semelhante a você. Sempre fui “acusada” de ter uma escrita mais literária. Esse “problema” que na Academia é visto com maus olhos ou com preconceito, para mim, sempre foi a grande qualidade da minha escrita científica. Nunca cedi à pressão acadêmica neste ponto e minhas defesas de mestrado e doutorado foram perfeitas, tanto que só pela tese ganhei dois prêmios nacionais e uma menção honrosa.
Afinal, o que é ter uma escrita literária?
É escrever com fluidez, sem floreios e masturbações teóricas desnecessárias? É tornar o seu texto acessível, tanto que quem não é da área possa ler e entender? Se for isso, ainda bem! Isso mostra que, pelo menos, estamos tentando fazer o exercício de nos aproximar da sociedade, de tirar a Academia do seu pedestal, de dizer para o povo: Olha, a ciência é uma coisa legal. Acredite que a vacina vai te proteger e não te transformar em jacaré!!
Como historiadora, eu acredito que esse retorno ao conservadorismo que estamos vivendo nos últimos anos, com grupos pedindo a volta da Ditadura Militar; movimentos anti-vacinas; o controle sobre o corpo feminino que impede o avanço das políticas públicas de saúde com relação ao aborto e ao controle de natalidade; o clamor pelo retrocesso dos direitos LGBTQUIAP+; tudo isso, se deve porque a ciência sempre esteve nesse lugar de elite: branca e desvinculada da sociedade.
Ora, a História (o discurso científico) é um discurso de poder. Quem escreve a História detém o controle de tudo, como dizia o Orwell no livro 1984:
Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado.
“Eu não sei fazer ciência”
Júlia, quando você diz: não sei fazer ciência. Eu entendo.
É lógico que você não sabe e não é culpa sua. Você tem 22 anos. Você deveria ser orientada por seus professores. Orientar não é só dizer o que o estudante deve fazer, é também compartilhar experiência. O problema é que nem todo mundo tira o melhor da sua experiência, e às vezes, acaba reproduzindo só as coisas ruins, como a lógica humilhante das relações de poder na Academia. E isso tem a ver com o fato, na minha opinião, que o sistema universitário do jeito que está posto hoje, está falido porque não dialoga com o zeitgeist. Não existe saber científico sem diálogo com as questões sociais e políticas. Não existe ciência sem olhar para o nosso tempo e sem pensar nas próximas gerações.
Eu tive sorte de ter como orientadores, no mestrado e no doutorado, professores que me deixaram muito livres para escrever da forma como eu queria escrever, claro, dentro dos limites éticos, teóricos e metodológicos da minha área. Por outro lado, também conheci gente bem escrota que fazia questão de demarcar seu lugar de poder, de assediar moral e sexualmente os alunos e olha, eu estudei nas maiores universidades do país (passei pela UFRN, UnB e UFRJ). Para o bem e para o mal, toda essa experiência me ajudou muito, inclusive, a pensar que tipo de pesquisadora eu queria ser. Só que isso levou tempo (dezoito anos para ser precisa). Recebi muitos nãos, muitas portas na cara, me frustrei muito.
Infelizmente, ainda temos professores que se creem melhores que seus estudantes, humilham alunos em sala, têm prazer em demarcar autoridade em uma espécie de pedagogia do terror, não sabem fazer críticas construtivas, e, embora eu reconheça que a titulação acadêmica cria status, acreditem quando eu digo: o que mais tem na Universidade é Doutor que não sabe de nada.
Como professora universitária, a coisa que mais vejo são estudantes com a saúde mental afetada, com dificuldades de tomar decisões ou de pensar no futuro sem ter um ataque de ansiedade, que colocam em xeque sua inteligência e capacidade de escrita. Não é para menos! Sem liberdade criativa não há produção científica, só repetição do que já existe.
Como construir um estilo de escrita científico
Júlia, escrever (literatura ou texto acadêmico) se aprende lendo e escrevendo. É na prática. Não existe fórmula. É acerto e erro. Constantemente. Claro, ajuda a se você tiver uma orientadora que te inspire e te estimule, o que pelo seu e-mail, parece que não foi bem o caso.
Se conselho fosse bom, a gente vendia, mas essa newsletter é gratuita, então, aqui vão algumas dicas:
Procure ler textos de professoras que você admira ou cuja escrita te estimula.
Não coloque como objetivo inventar a roda ou encontrar aquele tema de pesquisa que vai colocar seu nome no panteão da Academia.
Siga os seus instintos e veja aonde eles te levam. Uma boa pesquisadora segue a intuição sem perder de vista a razão.
Busque ser honesta consigo mesma e tente fazer o seu trabalho da forma mais decente que você puder.
Seja humilde, peça ajuda quando precisar.
Aprenda a ouvir o Outro e aproveite o que puder das críticas que você receber. O que não servir, você só agradece e segue.
A gente aprende a escrever copiando (é diferente de plágio, não confundir), quero dizer, é na leitura dos textos que te cercam e no exercício da escrita que você pode encontrar sua voz.
Você é jovem demais e quando estamos nessa casa dos 20 e poucos, tendemos a sermos arrogantes, a acharmos que temos todo o tempo do mundo e que tudo o que a gente faz é perfeito. Recusamos o olhar do outro. Ficamos com raiva da orientadora que nos diz: “por que você escreve como se soubesse do que tá falando?” e o pior é que ela tá certa: você não sabe, não por não ser inteligente, mas porque não tem experiência suficiente.
A beleza (o sentido) do processo é aprendermos que não sabemos de tudo, e sabemos menos ainda daquilo que achamos que sabemos. E por quê eu digo isso? Porque já tive 20 anos e já estive nesse mesmo lugar em que você está agora. É um paradoxo: como seguir as normas acadêmicas e ainda assim aproveitar a minha liberdade criativa?
Vou te responder como a Historiadora/Escritora Aquariana com ascendente em Leão que sou:
A Academia possui suas regras, mas podemos sim, subvertê-las. Com muito estudo, dedicação e com uma boa orientadora (que te respeite, em primeiro lugar), é possível escrever sobre o que queremos. É uma questão de intuir (novamente a intuição!) quando ceder e quando defender seu ponto de vista e, nesse processo, você pode acertar ou errar ainda mais. Acolha seus erros e se orgulhe dos seus acertos. Enjoy the ride! Siga sem puxar o tapete de ninguém, sem querer ser melhor do que ninguém, seja somente a melhor versão de você mesma (parece auto ajuda, eu sei), mas assim, você pode crescer nesse meio e, quem sabe, deixar sua marca.
Te desejo muita sorte no processo!
Com carinho,
Dia Nobre
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos na próxima,
Um beijo, se cuide.
Dia Nobre
Me identifiquei demais com a newsletter, minha escrita na Academia foi muito reconhecida (por quem quis, óbvio), mas também criticada por quem a dizia ser literária, narrativa, detalhada (quase sempre resumida no adjetivo "prolixa"). Eu, que escrevo como quem desafoga, levei isso para dentro dos estudos, não tem como separar (imagino) e gosto que assim seja, parece mais fluido e leve a mim, sem o rigor universitário de tradições que ainda estão lá arraigadas (e como um motivador).
Eu ouvi: há descrições demais, muitos conectores, parece um diálogo, muitos advérbios... enfim. Júlia tem 10 anos menos que eu, se isso chegar a ela, digo que confie na escrita que a deixe a vontade. Também ajuda ler e dialogar com quem e aquilo que te pareça "justo" em escrita (nos seus círculos e fora deles), faça cursos e encontros (clubes de leitura, escrita com autores de livros que goste ou amantes de literatura - vale muito a pena). No meio do caminho ainda haverá mais caminho pra te mostrar o que é bom pra você, sendo honesta consigo e tirando o fardo de que nada precisa da roda reinventada nesse campo
Esse texto trouxe um alento para o meu coração! Foi como um abraço pois estou numa fase puxada do mestrado. Obrigada <3