#14 Escrever como quem viaja
Nesta carta eu falo dos meus processos de escrita a partir de uma metáfora que eu amo: a da viagem. Escrita como um movimento contínuo, de uma aquariana que não se contenta em estar em um só lugar.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de blog. Me dedico mais às questões sobre escrita, literatura, saúde mental, mas vez ou outra você vai ler um drama desabafo pessoal também. ;)
Escrita, então, como movimento, como caminho para quem escreve e para quem lê. Caminho, migração de um lugar para o outro.
Maria Teresa Andruetto
Tenho tentado preservar um “estado de escrita” que não necessariamente envolve escrever todos os dias, mas me alimentar daquilo que me leva a escrever. Não é uma fórmula, é mais um desejo de permanecer conectada ao meu caminho. Zadie Smith diz que falar do ofício é falar da nossa própria escrita e isso tem me movido em muitos sentidos, principalmente nos momentos de reclusão.
Quem me acompanha no instagram sabe que construí um itinerário do novo romance (está nos destaques pra quem se interessar). Enquanto pensava nos capítulos, desenhei um mapa mental da estrada e das coisas que encontrava pelo caminho e registrei tudo no meu caderno de escrita.
Essas notas não se tratam do romance em si, mas de coisas que eu sentia, lia ou pensava enquanto escrevia. Gosto de pensar na metáfora do itinerário e entender que cada dia estou em um lugar diferente que me apresenta diversas possibilidades. Não há volta atrás porque só é possível caminhar para frente, ainda que, de vez em quando, eu encontre bifurcações pela estrada ou precise parar para recuperar o fôlego.
Durante o período em que escrevi o “No útero não existe gravidade” (Penalux, 2021), um livro autoficcional muito inspirado em memórias, um dos sentimentos que mais esteve presente foi o da falta. Michel de Certeau, um historiador francês de quem gosto muito, diz que a falta é o que sempre nos leva a escrever. Escrevemos para preencher um vazio. Curiosamente o livro foi escrito em plena pandemia, então não viajei. Tive que me contentar com percorrer as estradas imaginárias dentro de mim.
Para que (ou quem) eu escrevia aquela história? Foi a pergunta das minhas noites insones. Elena Ferrante em Frantumaglia diz que escrever é pagar um tributo para “se libertar das histórias”. Escrever para se libertar. Gosto disso.
Eu caminho com as outras
Para mim, a escrita se faz de referências, do olhar sobre o outro e sobre o que já foi escrito.
Me alimentei muito na escrita de outras mulheres para dar sentido a minha própria escrita. Saber que não ando sozinha. Notei que algumas dessas referências que tanto me marcaram nos últimos anos são feitas por escritoras pouco lidas ou conhecidas.
- Aglaja Vetranyi
Uma escritora romena morta precocemente que deixou um livro genial chamado Por que a criança cozinha na polenta que me atormenta sempre que releio;
- María Belén Aguirre
Poeta tucumana que com o Siamesas ganhou em 2020 o primeiro lugar no Fondo Nacional de las Artes, um dos maiores prêmios da Literatura argentina. Tive a honra de conhecê-la pessoalmente há dez anos quando morei em San Miguel de Tucuman e sua obra já me inspirava muito (inclusive um dos textos do meu livro é um diálogo direto com a obra dela);
- Olga Tokarczuk
Polonesa que ficou mais conhecida no Brasil por ter ganho o Nobel de Literatura em 2018 e cujo livro Correntes me atravessa todos os dias.
O que estas mulheres possuem em comum? São escritoras cujas obras beiram o insólito; que produziram obras que rompem com o gênero e cujos textos convergem também para uma busca de sentido; são autoras que estão sempre em movimento dentro da própria escrita.
Toda viagem parte de um lugar
Alguns trechos do meu caderno de escrita:
- pesquiso obsessivamente sobre a etimologia da palavra vesícula.
- respirei fundo. peguei água, café. tomei minha pílula diária. organizei a mesa. percebi que não gosto de post-its nas cores verde-limão e amarelo-lima. preciso comprar cores novas. reescrevi 12 páginas passando tudo da 1a. pra 3a. pessoa. ainda sem saber para onde vou.
- fiz diversas anotações que me parecem pensamentos da protagonista. descobri que ela não dorme profundamente desde o dia em que cruzou com uma raposa na estrada a caminho da encruzilhada.
Quando penso em uma história, quase sempre parto de uma cena e não de um personagem; rascunho o que seria o mapa dessa história, se possível, desenho os personagens, os caminhos, os portos, as bifurcações, os becos sem saída. Imagino onde as estradas vão me levar.
Depois, parto para a pesquisa. Sem modéstia, sou uma ótima pesquisadora e o maior volume de trabalho na minha escrita vem da parte de pesquisa. Nem tudo que pesquiso vai para diretamente para o texto, mas a pesquisa está lá. Também faz parte desse processo buscar referências ficcionais. Procuro autoras (de preferência) e autores que já tenham escrito sobre o assunto; busco filmes, séries e até jogos de videogame que circundam o tema. Fico obcecada, monotemática, envolta em uma espiral de repetição. Um ato de insistência: escrever é repetir.
É possível chegar em vários lugares através da leitura de outras obras. A leitura fará com que criemos uma topografia de referências que comporão o itinerário criando familiaridade: “[...] escrever também é a história do que já lemos e do que estamos lendo”, ainda Elena Ferrante em Frantumaglia.
Escrever é como percorrer ruas de uma cidade desconhecida. É nos deixar surpreender com as esquinas, os bueiros, as sujeiras, os gatos que circulam com ratos presos aos dentes, as flores que crescem entre rachaduras de janelas.
Escrever até quando não há o que escrever.
Pensar a escrita como um itinerário faz com que a primeira frase que coloco no papel seja o passo decisivo para a partida: escolher as roupas, fazer as malas, comprar as passagens. Embarcar.
O objetivo não é saber para onde vai, mas encurtar as distâncias. A escrita participa nessa atuação imaginativa e de repente, não só a primeira linha, mas um parágrafo, uma página, um capítulo, um livro inteiro se forma.
Essas leituras provocam também outras questões de cunho mais teórico. Eu, escritora, sou eu? Ou sou eu em diálogo com outras? É possível escrever totalmente sozinha? (assunto para outra carta)
Mesmo quando viajamos sozinhas, nosso caminho se faz com as pessoas que encontramos no caminho. Paramos nas estações, observamos a cara que a atendente faz quando escuta nosso destino. Entramos no ônibus, trocamos uma palavra com o motorista ou com a velhinha sorridente que senta ao nosso lado. Escutamos conversas entre casais em restaurantes na beira da estrada. Caminhamos ao lado de outras mulheres para nos sentirmos protegidas.
Toda mulher sabe como andar só neste mundo é algo perigoso. Toda mulher tem uma história de horror para contar. Seja em uma viagem. Seja em um livro.
No meu romance dialogo muito com escritoras latinas: Mariana Enriquez, Samantha Schweblin, María Fernanda Ampuero, Verena Cavalcante, Anita Deak, Natércia Pontes, Sandra Cisneros, são algumas delas. Autoras que mesclam gêneros e vozes. Que falam do horror presente no cotidiano. Que criam a partir de imagens do sobrenatural e do invisível.
Cada momento de escrita pede diálogos distintos, portanto, referências distintas. Toda viagem exige seu itinerário próprio. Um livro novo pede uma nova viagem.
Outras prosas
Este mês recebi um presente que me deixou muito emocionada. Uma leitora fez uma subscrição paga e me pegou de surpresa. Se eu dissesse para minha adolescente que um dia alguém iria querer pagar para ler o que escrevemos, ela não acreditaria. Mesmo que não esteja no meu horizonte ativar uma edição fixa paga desta newsletter, é muito importante saber que nossa escrita é valorizada. Então, deixo aqui minha gratidão para ela. ;)
Falando em presentes, dia 5 de fevereiro é meu aniversário e eu gosto de comemorar, mas não planejei nada para este ano. De todo modo, se você que me lê, quiser me presentear, existem várias formas: recomende essa newsletter para alguém ou compre, leia e avalie meus livros. O melhor presente para uma escritora é ser lida.
Recebi a primeira prova do meu livro de não ficção que sai em abril pela Editora Planeta e está ficando lindo demais. Em março vou preparar uma newsletter apresentando um pouco o tema.
A última newsletter da
está genial. Ela traz alguns hábitos de revisão que pretendem deixar o texto mais elegante e fluido. Recomendo a leitura.Este mês tenho lido bastante e decidi ler mais sobre processos de escrita de outras autoras. Não manuais ou livros técnicos, mas aqueles em que autoras falam sobre suas experiências. Comecei com O perigo de estar lúcida da Rosa Montero (tradução de Mariana Sanchez para a Todavia) e gostei bastante. Nele, Rosa fala como o processo criativo pode estar relacionado com a loucura ou, melhor dizendo, com a neuro divergência. Me identifiquei em muitos pontos porque tenho Transtorno de Personalidade Borderline que é um transtorno psíquico de desregulação emocional e isso afeta muito minha relações pessoais e minha escrita. O próximo será Escrita em movimento da Noemi Jaffe ou Escrever é muito perigoso da Olga Tokarczuk (que comecei ano passado, mas fui atropelada por tarefas de trabalho que me estressaram muito e não cheguei nem na metade).
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos em breve,
Com amor e fúria,
Dia Nobre
Eu adoro ler sobre processos de outros escritores! Escrever é uma palavra-músculo. Há muito que exercitar!
Também deixo aqui meu apelo para que você traga uma newsletter sobre o processo de pesquisa S2.
Adorei saber o seu processo, Dia! Você podia me ensinar a pesquisar (nessa parte sou péssima)