#4 Sempre fui chamada de exagerada
ou como é viver com Borderline - Especial Setembro Amarelo
Antes de qualquer coisa: aqui eu falo enquanto paciente. Se você se identificar com algo, procure um profissional da área. Não faça autodiagnóstico!
“It is as if my life were magically run by two electric currents: joyous positive and despairing negative--which ever is running at the moment dominates my life, floods it.”
-Sylvia Plath
Eu não lembro, exatamente, quando comecei a ter crises recorrentes. Desde a adolescência já lidava com altos e baixos: momentos de extrema tristeza alternados com uma euforia incontrolável. Mas, somente em 2013, perto de completar 30 anos eu decidi procurar um médico. Fui a um neurologista que me receitou ansiolíticos e me disse que meu sofrimento era derivado da sobrecarga de tensão que vivia naquele momento: escrevendo a tese de doutorado, estudando para concurso, incerteza sobre o futuro, etc.
Eu errei duplamente: primeiro porque omiti muita coisa na consulta e fiz parecer que era algo novo e pontual; e errei por procurar o médico errado. O fato é que eu tinha muito preconceito com relação às doenças mentais e ir a um psiquiatra era assumir que precisava de ajuda real.
Em 2015, durante uma crise particularmente forte, com ideação suicida e tudo mais, acabei chegando ao psiquiatra que me acompanha até hoje, e, logo em seguida, comecei a fazer análise. Foi um momento muito delicado para mim, pois esse diagnóstico não é algo fácil de ser obtido. Ele é facilmente confundido com transtorno de ansiedade, por isso, o acompanhamento regular com o psiquiatra e com o terapeuta é fundamental para que se chegue a ele. Exige paciência e comprometimento com o processo.
Não há uma medicação específica para quem sofre com o Borderline. É preciso fazer testes com ansiolíticos e antidepressivos, alternar fórmulas e dosagens, articular o tratamento com a terapia, alimentação saudável e exercícios é fundamental para que a vida seja funcional e manejável.
Hoje acho que lido bem, talvez os outros que não lidem (risos) e eu entendo porque sei que não é fácil. Se estou triste, tenho a tendência a me fechar. Quando estou em mania, fico hiper comunicativa. Por isso, eu evito marcar compromissos a longo prazo, principalmente com amigos (tenho poucos), porque pode ser que no dia eu não esteja bem para socializar.
Geralmente, os compromissos de trabalho eu manejo melhor porque meu superego é bem dominante nessas horas (eu o chamo de Maitê) e, dificilmente, falho com relação a isso, mas hoje em dia eu só me comprometo com coisas que sei que posso cumprir, principalmente em relação a prazos, sabe? Antes eu me sobrecarregava porque tinha medo de desagradar as pessoas (outro sintoma do Borderline: a gente tem muita dificuldade de dizer não por medo de que o outro nos abandone), mas hoje, se eu não posso fazer algo, digo não sem culpa.
Falar publicamente sobre o tema
Falar sobre meu transtorno mental nas redes sociais não foi uma decisão fácil, mas foi uma decisão acertada. Me abrir para o mundo foi assumir que eu não preciso lidar com isso sozinha. Meu livro de contos No útero não existe gravidade1, serviu como uma vitrine onde expus as questões relacionadas ao transtorno: solidão, ansiedade, depressão, distimia, hipomania, ideações suicidas, uso de medicamentos controlados, sessões de terapia, etc.
Eu vim de um lugar onde a gente aprende desde cedo a jogar todos os problemas debaixo do tapete porque sobreviver era a única questão. Eu era pobre, morava na periferia, no interior do Ceará e tive que começar a trabalhar muito cedo para ajudar em casa. Passei anos lidando com sintomas na base do «engole o choro e continua». Quando consegui certa estabilidade a doença veio como um tornado. levantou o tapete e eu tive que limpar tudo (quantas pessoas aprendem a ignorar seus sintomas para poder sobreviver?).
Depois que publiquei o livro recebi muitos feedbacks de pessoas que procuraram ajuda profissional, começaram a fazer terapia e a buscar respostas para suas dores. É muito importante para mim saber que minha literatura ajudou alguém porque escrever me ajudou muito.
Intensa, volúvel, dramática, exagerada
Quando eu não sabia o diagnóstico, não fazia terapia e vivia sem a medicação, o transtorno afetava muito minhas relações pessoais. Eu era chamada de intensa, volúvel, dramática, tanto que por um tempo, acreditei que era mesmo. Perdi as contas de quantas vezes eu escutei que era uma pessoa difícil de se relacionar. Me sentia culpada, achava que tinha que mudar para me adaptar aos desejos das pessoas, sofri muito negando a mim mesma para agradar aos outros.
Mas após o diagnóstico (não foi tão imediato, levou anos de terapia), eu passei a me colocar em primeiro lugar, a me valorizar e entendi que se alguém quisesse estar perto de mim, teria que fazer o esforço de me compreender e me respeitar.
Assumir que precisava de ajuda foi o primeiro cuidado que eu tomei com a minha saúde mental. Foi uma decisão difícil, desmarcava as sessões com a analista, inventava desculpas para mim mesma, me achava fraca. Foi bem difícil, mas, aos poucos, percebi que foi a melhor decisão que tomei na vida.
A segunda melhor decisão foi me afastar de coisas e pessoas que me faziam mal, mas que eu mantinha na minha vida, por um senso de dívida, ou mesmo, por conveniência. Mapear os relacionamentos e tentar identificar aqueles que são abusivos ou tóxicos foi algo primordial. Às vezes, a gente se convence de que precisa de algo só pelo medo de mudar ou de perder alguém, que na verdade, nem valia o nosso esforço.
Cada dia que passa, me convenço mais de que a saúde mental é uma prioridade. A gente vai deixando para lá, se ocupando com o trabalho e até com os problemas dos outros. Menos com a gente.
Chega uma hora em que descobrimos que não dá mais para ignorar o fato de que se não estamos bem emocionalmente, não conseguiremos cuidar de mais nada. Não é ser egoísta. É cuidar de si para poder cuidar do resto das coisas. É se colocar em primeiro lugar para poder fazer da sua vida um lugar bom para outras pessoas.
Falar sobre saúde mental é importante. É uma forma de combater o preconceito e normalizar a busca por tratamento especializado a qualquer momento, não somente no Setembro Amarelo, mas não é fácil, exige um nível alto de empatia. Exige olhar para o outro e buscar compreendê-lo.
Por isso, eu digo para mulheres que como eu, sofreram muito tempo com a falta de apoio familiar e dos amigos; que sofreram com o sentimento de insuficiência e rejeição: se cuidem, priorizem a saúde mental porque a vida é só uma e perder a sanidade é fácil demais. No meu livro, tem um poema que fala da dificuldade de viver nessa corda bamba: «viver em desequilíbrio, não é viver», então eu insisto. E pago o preço.
Para finalizar, duas listinhas (amo listas):
Coisas que você precisa saber sobre mim (e aqui eu falo da minha experiência, os sintomas variam conforme as pessoas afetadas):
Tenho manias e uma rotina. Gosto de marcar compromissos com antecedência porque isso me ajuda a aterrar. Se eu não consigo, fico ansiosa e isso pode desencadear uma crise.
O meu humor é instável. Posso estar muito feliz em um minuto e no seguinte me irritar com algo e essa irritação me leva à melancolia muito rapidamente. O inverso também pode acontecer, mas é mais raro. A medicação ajuda a controlar.
Sou impulsiva e meu filtro social é um pouco desregulado. Posso acabar dizendo coisas violentas ou grosseiras. Quando percebo, procuro me desculpar e reconhecer onde errei, mas ajuda muito se você aponta o erro, assim eu consigo entender mais rápido o que disse/fiz errado.
Sobre o medo do abandono: é real e dói muito.
O Borderline também causa um Transtorno Dismórfico Corporal que já me fez desistir de viajar ou sair porque eu não me via bem no espelho e desencadeou crises auto destrutivas.
Tenho hipersensibilidade a barulhos intensos, sons agudos, luz excessiva e multidões;
Por fim, eu não sou especial. Não quero ser tratada como tal, mas também não acho legal que me taxem como "dramática", "maluca", "fora da caixinha".
Eu não vivo no meu infinito particular, vivo no mesmo mundo que vocês. A única coisa que peço é respeito.
Coisas para NÃO dizer a uma pessoa Borderline (ou com Transtornos mentais no geral:
Deixa de bobagem/drama.
Tomou o remédio hoje?
Pare de querer chamar atenção.
É muito difícil gostar de você.
Você é muito sensível.
Você diz "te amo" demais.
Outras prosas
Aqui tem uma lista de livros mais teóricos sobre o Transtorno de Personalidade Borderline, mas o grande clássico da ficção sobre o tema é: Girl, Interrupted de Susanna Kaysen (inclusive é uma autoficção) e tem filme com a Wynona Rider interpretando a Susanna.
Estou lendo O corpo de Laura da Laura Redfern Navarro, uma jovem escritora paulistana muito talentosa. Ela mantém uma newsletter aqui sobre o processo de escrita do livro que foi vencedor do Proac 2022. É só seguir:
Terça sai a newsletter regular em que responderei a uma pergunta que me fizeram por e-mail: “como fazer ciência?”
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário no Substack. Para apoiar a newsletter, você pode também compartilhar com amigues e recomendar a assinatura que é gratuita.
Nos vemos na próxima,
Um beijo, se cuide.
Dia Nobre
No útero não existe gravidade é uma autoficção que parte de um acontecimento que me causou feridas profundas, com as quais lido até hoje. Ele trata das marcas que são invisíveis aos olhos dos outros, perceptíveis apenas para quem tem a memória do acontecimento, essa teia que balança na tênue fronteira entre a lembrança e o esquecimento.