#13 Yellowjackets e Mandíbula: o potencial destruidor da adolescência
Hello, pessoas! Na primeira newsletter do ano eu compartilho um pouco da minha vida, quer dizer, das minhas impressões sobre uma série e um livro que há meses ocupam um triplex na minha cabecinha.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de blog. Me dedico mais às questões sobre escrita, literatura, saúde mental, mas vez ou outra você vai ler um drama desabafo pessoal também. ;)
Se você perguntasse para a menina de 14 anos que eu fui qual era a coisa que ela mais desejava no mundo, ela provavelmente responderia: ser aceita. Com a aceitação, imaginava, viria o amor, o respeito e todas as coisas que ansiava.
À primeira vista eu era uma garota tímida e introvertida, mas quando olho para trás e observo mais de perto a adolescente que fui, um arrepio me percorre a espinha.
Espelho, espelho meu, existe alguém mais autodestrutiva do que eu?
Quantas vezes eu não tive vontade de destruir o mundo enquanto me trancava no quarto ao som de alguma banda de gothic rock dos anos 2000. Naquela época, eu me sentia a pessoa mais solitária do universo. Minha mãe tinha surtado e ido embora de casa; vivia um amor não-correspondido por uma menina enquanto mantinha um relacionamento com um cara que tinha o dobro da minha idade, passava dias fora de casa, bebia e fumava muito, me achava feia e gorda (eu pesava 35 quilos e ainda não sabia que tinha disforia de imagem).
A adolescência foi para mim um poço profundo e enlameado que fiz de casa. Lá, eu era consumida por uma angústia tremenda que não me deixava ver futuro. Foi lá que eu comecei a me machucar, que surgiram as primeiras ideações suicidas (e homicidas), lá onde toda a solidão e desamparo do mundo me consumia.
Eu nunca tive amigas. Haviam algumas colegas com quem bebia junto, conversava, ouvia música, mas que nunca considerei como amigas de verdade e isso acabou formando muito do meu caráter, principalmente na questão da confiança. Se minha própria mãe havia me abandonado, como eu poderia confiar em qualquer outra mulher?
Sei que grande parte do que compõe a minha personalidade (borderline) foi moldada a partir do abandono e dos abusos psicológicos que sofri na adolescência (pelo que me lembro, pois bloqueei quase todas as memórias da infância), esse período estranho em que não sabemos quem somos, ao mesmo tempo em que temos tantas certezas sobre tudo.
Voltei a pensar nisso quando assisti a primeira temporada de Yellowjackets (Paramount+) e logo em seguida li Mandíbula, da equatoriana Mónica Ojeda (publicada no Brasil pela Autêntica Contemporânea com tradução da Silvia Massimini Felix). Como apareceram para mim, uma seguida da outra, as obras se conectaram, de modo que me parecem siamesas.
Em Yellowjackets, acompanhamos um time de jogadoras de futebol do ensino médio que caem em uma floresta depois de uma falha mecânica no avião que as transportava. Em Mandíbula, acompanhamos a relação que algumas adolescentes estabelecem entre si e com figuras de autoridade femininas: mães e professoras. As duas histórias trazem personagens adolescentes e ambas poderiam ser prosaicas, não fosse a forma como as narrativas são conduzidas.
Canibalismo e mutilação
“O amor começa com uma mordida e um deixar-se morder”. (Annelise, Mandíbula)
A boca é o órgão que guia ambas as narrativas. O medo vem da boca. A boca que grita emudecida. A boca que canta uma oração a um Deus Branco ou a um deus da natureza, a boca que beija, lambe, morde, come e vomita. A boca que mente, dissimula e afaga. Que é a entrada (ou saída) do estômago, lugar onde ruminamos alguns dos sentimentos mais obscuros que podemos ter: o medo, a raiva, a paixão.
Em ambas as obras, o corpo adolescente é um espaço erótico onde habita o medo. Falo em erótico, no sentido grego clássico, o eros como um tipo de loucura, um desejo intenso.
“Porque o medo é uma emoção e é a prova de que o primitivo nos habita” (Annelise, Mandíbula, p. 212)
O medo de não ser amada, não ser aceita pelo grupo; o medo de sujar-se em público. Em Yelllowjackets, o medo da fome, da morte, do desconhecido refletem bem esse momento das nossas vidas onde o nosso corpo se transforma: a pele se estica, a voz engrossa, crescem os pelos, os seios, os órgãos genitais. Aparecem as espinhas, as manchas, os fluidos; descobrimos o sexo, a menstruação, o gozo, a ejaculação. A adolescência é uma mancha em um lençol branco.
Por dentro, uma revolução se instala. Somos bombardeadas por hormônios, estrogênio, testosterona e… de repente, aquela coisinha bonitinha que éramos na infância se converte em uma monstruosidade.
Começamos a sentir as pressões sociais: ser a mais bonita, a mais magra, o mais talentoso, o mais malhado, o mais forte. Meninas fechem as pernas, meninos não chorem!
Tanto na série quanto no livro o foco se concentra nos corpos das meninas. Neles, a manifestação do desejo se dá em uma linguagem da violência que se mescla a uma ritualidade religiosa me fazendo lembrar das místicas do século XII que se aproximavam de Deus a partir das autoflagelações, dos jejuns, das purgações (novamente a boca). Aliás, a antropofagia presente em Yellowjackets, e em grande medida, em Mandíbula, poderia referir-se também ao “comer o corpo de Cristo”, pedra fundamental da devoção católico-cristã.
Neste estado de transição, onde não somos crianças nem adultos, a linguagem precisa ser recriada. Tanto no livro quanto na série, a linguagem é organizada pela violência. No livro, as garotas se desafiam em tarefas que envolvem o sujar-se e o comer algo estranho: “Uma vez, no pátio do prédio, Natalia cumpriu o desafio de enfiar na boca os girinos da lagoa [...] estava morrendo de medo de que seu estômago se enchesse de sapos bebês”, Fernanda, Mandíbula, p. 158-159). Na série, lideram aquelas que não têm medo de sujar-se de sangue, de matar, de descarnar animais selvagens.
Estamos perdendo a infância?
Se as mulheres 30+ sentem a pressão para rejuvenescer, as adolescentes são pressionadas a amadurecer mais rápido. Parece-me que o capitalismo e a cultura do consumo querem nos manter eternamente na faixa dos 20 anos.
Recentemente, vi no X (ex Twitter) uma colega escritora reclamando que sua filha de 11 anos estava obcecada com os rituais de skincare que ela vê em trends do Tik Tok. Nos comentários, mães de adolescentes falavam como não há mais espaço para uma pré-adolescência; que as crianças estavam sendo jogadas diretamente na adolescência e na primeira fase da vida adulta. Fico imaginando as consequências disso no futuro dessas meninas.
Se nós, millennials ainda pudemos saber o que é ser criança, se pudemos viver uma adolescência que, para o bem ou para o mal, nos deu um tempo de preparo para os desafios da vida adulta, acho que a GenZ perdeu esse barco e estão meio que condenados a vagar pela vida sem muita orientação, feito alguém que desprevenidamente é empurrado em um abismo.
Outras prosas
Minha última leitura de 2023 foi o livro El invencible verano de Liliana, da mexicana Cristina Rivera Garza e eu falo um pouco sobre ele aqui.
Minha primeira leitura de 2024 é O perigo de estar lúcida, da Rosa Montero, tradução de Mariana Sanches para a Todavia e estou me identificando e me divertindo muito. Uma das minhas metas para este ano é ler mais ensaios de autoras falando sobre seus processos e experiências de escrita e comentá-los aqui no Substack.
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos na próxima,
Com amor e fúria,
Dia Nobre
Gostei muito da edição! "Mandíbula" mexeu muito comigo, principalmente no que diz respeito à relação entre mãe e filha e como um mesmo ato pode ser ao mesmo tempo ferir e proteger (a crocodila escondendo os filhotes na boca)
Dia, texto maravilhoso! A série eu assisti e amei. Vou comprar o livro para ler.