Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de elaborar questões sobre escrita, literatura e saúde mental. A ideia é que ela seja quinzenal, mas como sou Aquariana e Borderline, vai depender do meu humor. ;)
Quando eu era criança elegi o banheiro da casa da minha avó como o meu lugar preferido no mundo.Era amplo, com piso de cimento queimado (quando isso era coisa de gente pobre e não modinha de decoradores da geração Z). Tinha um bom chuveiro e um degrau que dividia a parte de tomar banho da parte do vaso sanitário. Dava pra tampar o ralo e fazer um laguinho. Eu gostava de sentar no chão enquanto o chuveiro despejava a água gelada no centro da cabeça e ela se misturava com as lágrimas reprimidas durante o dia. Eu sempre fui chorona (maldita Lua em Peixes!).
Na última semana, me peguei planejando ter um tempo para chorar. Um tempo só meu, sem ninguém incomodar, sem celular, sem gatos arranhando a porta, sem vizinhos brigando, sem o barulho de crianças gritando no andar debaixo. Pensei: talvez sexta à noite eu consiga. Não consegui. Mas no sábado deu certo e eu chorei sentada no meu box com piso de porcelanato e água quente desabando na minha cabeça enquanto lembrava de vovó que chorava na lavanderia, esfregando pilhas de roupas; da minha mãe que chorava deitada na cama à noite e bem baixinho (como se ninguém pudesse ouvir naquela casa de 40 metros quadrados onde tudo se ouvia); da vizinha que chora ouvindo música alta; de uma colega de quarto que chorava fumando na sacada da janela no Rio de Janeiro.
Quantas mulheres vivem ser ter tempo de sentir, ocupada com as tarefas domésticas, o trabalho, companheiros e filhos?
A delícia de ser mulher
Um dia desses, vi um anúncio de um curso: “Rituais de Auto cuidado para mulheres sem tempo”. Pelo módico valor de 147,00, a proponente promete ensinar “um jeito simples de criar pequenos momentos de prazer em meio a sua rotina exaustiva e viver a delícia de ser mulher.”
Quase comprei o tal curso só pra ver o que essa pessoa propõe porque pra mim já é difícil encontrar um tempo (e dinheiro) pra ter uma rotina básica de auto cuidado como lavar o cabelo, por exemplo, imagina quem precisa conciliar trabalho e família.
Você já se perguntou quantos minutos por dia você dedica a se cuidar?
Depois me peguei pensando aonde é que está a delícia de ser mulher. A gente sofre um processo de socialização violentíssimo desde pequenas, vivemos com medo de andar sozinhas na rua, precisamos pensar mil vezes na roupa que vamos vestir antes de sair (enquanto os homens andam tranquilamente sem camisa por aí), temos que provar continuamente que somos competentes no nosso serviço e, mesmo assim, trabalhamos mais e ganhamos menos que os homens. Sério, cadê a parte da delícia? Eu ainda estou procurando.
Pobreza de tempo
Beba água, pratique exercícios, faça skincare e cronograma capilar, coma frutas, tome banhos longos, medite, leia livros. Eu que falo de certo lugar de privilégio de classe média branca, sinto fortemente o adoecimento da falta de tempo. E olha que tenho uma companheira que divide as tarefas domésticas comigo e decidimos não ter filhos.
No livro Direito e desigualdade, a juíza do trabalho Bárbara Ferrito discute como o direito ao trabalho demanda das mulheres um tempo que elas não tem, uma vez que vivendo em uma sociedade patriarcal, arcamos com todo o trabalho não-remunerado, ou seja, o trabalho doméstico.
A autora utiliza o conceito pobreza de tempo para demonstrar que há um custo alto de ingresso no mercado de trabalho, principalmente, para mulheres com demanda de trabalho doméstico, de cuidado com outras pessoas (filhos ou pais idosos) e de deslocamento, ou seja, os papeis sociais desenvolvidos pelas mulheres estão sempre exigindo uma escolha que implica quase automaticamente na falta de cuidado consigo mesma.
As mulheres estão mais sujeitas ao adoecimento mental do que os homens, está estatisticamente comprovado. Eu mesma estou ainda processando a informação de que todas as minhas queixas com relação à saúde física (dores no corpo, enxaquecas, etc.) são, na realidade, de fundo psicológico. Fiquei pensando como minha própria mente pode me boicotar assim, até me dar conta que não sou eu que me boicoto, é o sistema que boicota, não só a mim, mas a todas as mulheres.
Uma das coisas que me frustra muito é não ter tempo para ler e escrever como eu gostaria, sem pressa, sem pensar que tenho, sei lá, que preencher planilhas sem sentido ou participar de reuniões que poderiam ser um e-mail. Queria poder tirar uma hora do meu dia para fazer exercícios sem lembrar que eu deveria estar adiantando algum trabalho naquele tempo.
Um agravante para mim é ter que lidar com o meu transtorno mental que, em certos dias, me paralisa. Não tenho forças para fazer nada e nisso eu perco um tempo valioso. É como ter uma âncora te puxando para o fundo do poço e todo o seu esforço diário consiste em puxar de volta, não deixar que ela te afunde mais ainda. Isso demanda um tempo danado, e, sinceramente, eu ando muito cansada.
Não é que não existam dias (às vezes, semanas) muito bons. Eles existem. Nesses dias eu consigo me equilibrar, consigo tirar prazer do trabalho, cuidar de mim, me exercitar… mas no último ano, foram dias raros. Sinto que estou me arrastando mais do que deveria ou do que minha mente pode aguentar. Preciso de um super alicate que quebre essa corrente, algo que faça essa âncora afundar e me permita submergir e viver bem.
Enquanto isso não acontece, vou criando táticas para driblar o tempo que me falta (ou que é me é roubado), não só para chorar, claro, mas para descansar, cuidar de mim, escrever e quando não der… bem, sempre vai haver um banheiro.
Outras prosas:
Aquele que corre macio, newsletter da
me fez refletir muito sobre a coisa do tempo.A pobreza de tempo das mulheres por Anna Carolina Venturini na Quatro Cinco Um.
Entrevista com a juíza do trabalho Bárbara Ferrito na revista Gênero e Número.
Uma série que aborda o tema é a americana The Bold Type na Netflix. É leve e divertida, mas também aborda temas necessários para mulheres adultas que precisam se deparar com os conflitos entre o desejo e o trabalho.
No terceiro episódio (Take Me as I Am, Whoever I Am) da série Modern Love, Anne Hathaway interpreta uma jovem que tem o seu tempo e sua energia sabotados continuamente pelo Transtorno de Personalidade Bipolar. Com o Borderline é quase daquele jeito, com a diferença de que pode acontecer várias vezes ao dia.
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos na próxima,
Um beijo, se cuide.
Dia Nobre
Obrigada!
eu amei.