#2 Eu sinto muita raiva
e vou gritar pra todo mundo ouvir ou como uma música do Roupa Nova inspirou esse texto.
É domingo e às oito da manhã eu desperto com a vizinha berrando aos quatro ventos “eu te amo e vou gritar pra todo mundo ouvir”. Eu já não tinha dormido muito bem e isso foi a gota d’água para eu levantar com raiva do mundo. Sabe aquele meme da Billie Eilish fazendo skincare? É o que eu gostaria de fazer com a vizinha, só que no lugar do sabonete eu usaria um ralador de queijo. Mas, claro, não faço. Só engulo a raiva com um gole de café bem quente que desce rasgando a garganta.
Fiquei na cama escutando os berros da vizinha e pensando em maneiras de me vingar enquanto analisava a letra da música. Eu nunca tinha percebido, mas o eu lírico da canção não passa de um passivo-agressivo e a mulher, certamente, furiosa, fez muito certo em ir embora.
“Amanheci sozinho/ Na cama um vazio/ Meu coração que se foi/ Sem dizer se voltava depois”: Se ela foi embora, amigo, boa coisa você não era.
“Sempre depois das brigas/ Nós nos amamos muito”: Isso me cheira muito a relacionamento abusivo.
“Se te fiz algo errado, perdão / "Volta pra mim?”: Todo mundo sabe que SE a pessoa não sabe o que fez de errado, ela não está realmente arrependida.
“Eu te amo e vou gritar pra todo mundo ouvir”: O equivalente a aparecer na porta da casa da pessoa com um carro de mensagens (lembram quando isso era moda e todo mundo achava romântico?!) Coisa de stalker.
“Ter você é meu desejo de viver”: Querido, você precisa de terapia.
“Sou menino e teu amor é que me faz crescer”: Eu não sou sua mãe. Sério, procura uma terapia.
Gente, que música horrível! Mas voltando ao assunto…
Eu sou uma pessoa que sente muita raiva. Não direciono minha raiva a um objeto ou pessoa necessariamente, é só algo que sinto em grande intensidade quase o tempo todo. O mundo me incomoda demais. É uma eterna sensação de tudo no lugar errado o tempo todo, de que não consigo me encaixar, de ser um cuco em um ninho de bem-te-vis, sabe? Esse desconforto com a situação das coisas não diz respeito só à vida pessoal, mas ao caos social em que vivemos também.
Houve um tempo em que eu queria ser uma pessoa mais feliz, ou melhor, mais positiva, que não se irritasse com bobagens (são bobagens mesmo?), mas não sou. E tudo bem. Já fiz as pazes comigo mesma. Eu queria ser um filhote de golden retriever, mas sou um pinscher e minha aparência pequena e frágil, cheia de problemas de saúde, às vezes engana.
Inclusive, minha raiva mais recente, antes da vizinha cantando Roupa Nova, foi a descoberta que minhas enxaquecas e dores crônicas podem ser de fundo psicossomático. Basicamente, meu cérebro entende que qualquer alteração cardíaca é um indicativo de perigo e dispara um ataque de pânico.
Ainda estou investigando (fiz uma bateria de exames e tenho mais um bocado pra fazer), mas até agora, essa pode ser a melhor explicação para as dores horríveis que eu sinto após fazer qualquer tipo de exercício físico (mesmo os mais leves) porque os exames não indicam nada físico. Antes, as dores não eram tão frequentes, mas elas veem piorando muito e não passam com analgésico leve, então eu fico com dor e com raiva.
Qualquer emoção (mesmo as boas) que cause arritmia prolongada (mais de dez minutos, segundo minha observação) provoca uma pane no sistema e meu corpo quer desligar. Bocejo tanto que minha mandíbula dói, sinto um cansaço de morte, posso chegar a despersonalizar. Se não me resguardo, no dia seguinte, as dores estão lá me fazendo tomar medicações que não vão resolver porque o problema não está no funcionamento do corpo em si.
Sabe aquela página da Obvious, “Chapadinhas de endorfina”? Eu tenho raiva daqueles posts maravilhosos sobre como se exercitar pode ser divertido porque meu corpo não produz endorfina o suficiente para avisar ao sistema que “está tudo bem, caramba, ela só tá malhando!” A alternativa está sendo praticar yoga, mas tudo bem leve mesmo. Talvez eu nunca seja capaz de ficar chapada de endorfina fazendo exercícios, mas calma, ainda me restam os orgasmos. (Sexo é um tipo de exercício, não é?)
Outra coisa que me cansa enormemente é a vida social. Sou professora universitária, escritora e preciso me conter muito diante de alguns absurdos que vivencio na Universidade e no mercado literário. Não posso dizer tudo o que penso ou sair manifestando o meu descontentamento (raiva!) por aí, afinal eu prezo pela urbanidade e pela harmonia e, realmente, não acredito que ser honesto seja sinônimo de falar tudo o que vem na cabeça, principalmente, nos momentos da raiva.
Aliás, eu concordo com a Uma Thurman, mesmo quando somos injustiçadas, é melhor não falar em público quando se está brava, para não ter arrependimentos. Além disso, a gente sempre corre o risco de ser vista como louca, histérica, desequilibrada. A ex-presidenta Dilma Roussef que o diga:
Mulheres Raivosas ou empoderadas?
É interessante que quando pesquisamos por “mulheres raivosas” no Google, cerca de 40% dos resultados da primeira página são textos feministas discutindo como mulheres que rompem padrões são vistas como raivosas; os outros 60% são de textos sobre o estereotipo da mulher negra raivosa. Ao meu ver, estes resultados indicam que a manifestação da raiva está diretamente ligada ao processo histórico de empoderamento feminino e à luta das mulheres por mais voz e espaço na sociedade.
Para a pesquisadora Joice Berth, o conceito de empoderamento está relacionado à um movimento coletivo:
Quando assumimos que estamos dando poder, em verdade, estamos falando na condução articulada de indivíduos e grupos por diversos estágios de autoafirmação, autovalorização, autorreconhecimento e autoconhecimento de si mesmo e de suas mais habilidades humanas, de sua história, principalmente, um entendimento, sobre a sua condição social e política e, por sua, vez, um estado psicológico perceptivo do que se passa ao seu redor. […] [é preciso] criar ou descobrir em si mesmos ferramentas ou poderes de atuação no meio em que vive e em prol da coletividade (Berth, Joice. Empoderamento, Jandaíra, 2019, p.14).
Aliás, que raiva do que fizeram com a palavra empoderamento, não?! Mas o ponto é: se nossa raiva individual é poderosa, imagina a raiva coletiva?
Antes, eu me via muito como alguém imatura por sentir tanta raiva. Mas hoje, percebo como ela foi combustível de mudanças em minha vida. Ela me ajudou a ir embora da minha cidade natal, estudar e romper com vários padrões tóxicos da minha família. Ela inspira a maioria dos meus textos, inclusive meu romance que vai sair ano que vem pela Companhia das Letras foi escrito em alguns momentos importantes de raiva e tem como tema principal a violência contra as mulheres.
Foi raiva que eu senti quando li a história oficial de Juazeiro do Norte e percebi o apagamento de uma mulher negra, a Beata Maria de Araújo, e isso fez com que eu passasse quase vinte anos estudando a história dela (o livro sai em fevereiro de 2024 pela Editora Planeta).
A raiva de Medusa
Usar a raiva como disparador, não é imaturo, ao contrário, pode ser uma ferramenta muito útil. Se não for a raiva, como a gente vai se defender de todas as violências que sofremos diariamente na sociedade? Como eu vou rebater o colega de trabalho que me chama de “maluca” porque estou sendo assertiva ou a misoginia camuflada de outros que acham que “eu vejo problema em tudo” ou ainda o cara que me assedia e me fetichiza porque eu sou uma mulher queer? Sim, nossa raiva deixa os homens desconfortáveis porque deixamos de sermos vistas como domesticáveis, submissas, obedientes. Nos tornamos feias e desagradáveis como a Medusa.
No ocidente, a Medusa é um dos símbolos da raiva feminina. O mito conta que ela era uma das mulheres mais bonitas da Grécia e, por isso, despertou o desejo de Poseidon que passou a persegui-la. Ela era sacerdotisa da deusa Atena e usou o templo para se esconder, mas foi encontrada e estuprada pelo deus dos mares dentro do templo, o que configurava um sacrilégio. Atena então, ao invés de culpar o infeliz, culpa a vítima. Medusa é transformada em uma Górgona, um monstro que carrega serpentes na cabeça e cujo olhar transforma as pessoas em pedra (ah, se eu tivesse o poder de transformar quem me irrita em pedra!).
A raiva de Medusa nasce do terror que ela viveu: violada e injustiçada.
A raiva é combustível para continuarmos vivendo e como eu não me permito mais contê-la, a canalizo em algo bom (depois de xingar mentalmente). Transformo tudo em palavras, como hoje, em que nem imaginava que uma música do Roupa Nova sendo gritada pela vizinha me faria escrever esse texto.
Outras prosas:
Stephanie Hegarty, em uma matéria da BBC publicada em dezembro de 2022, fala de uma pesquisa Instituto Gallup que indica que mulheres em todo o mundo estão ficando mais “bravas” nos últimos 10 anos. Eu me pergunto, estamos mais bravas ou menos dispostas a aguentar a opressão?
Um texto fundamental sobre os usos da raiva pelas mulheres negras é da poeta e pesquisadora Audre Lorde: “Toda mulher tem um arsenal bem guardado de raiva potencialmente útil contra aquelas opressões, pessoal e institucional, que fez com que aquela raiva existisse.” (Lorde, Audre. Os usos da raiva: as mulheres reagem ao racismo in Irmã Outsider; tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.)
Uma ficção em que a raiva é combustível da mudança: Pequenos incêndios por toda parte de Celeste Ng, publicado em 2018 pela Intrínseca com tradução de Julia Sobral Campos. Mia Warren é uma artista e mãe solo que vai morar em Shaker Heights, um subúrbio norte-americano em que tudo é planejado e organizado. Ela aluga uma casa que pertence a Elena Richardson, a personificação da elite branca-cristã-hétero e da relação delas duas faísca raiva. Tem uma série muito boa baseada no livro, estrelada por Kerry Washington no papel de Mia e Reese Witherspoon como Elena. No Prime Video.
Um filme em que a raiva é combustível da vingança: Kill Bill, lançado em 2004, com direção de Quentin Tarantino. Uma Thurman protagoniza uma personagem conhecida somente como A Noiva que acorda de um coma de quatro anos decidida a se vingar de Bill, seu ex-amante e chefe, que tentou matá-la no dia do casamento e sequestrou sua filha.
Uma série que saiu este ano chamada Beef traz a raiva como motor narrativo. É estrelada pela Ali Wong e está na Netflix.
Uma música para ouvir na hora da raiva: Oceano de MC Tha : Ela tem uma voz melodiosa que contrasta sutilmente com o peso da música. Eu amo.
Um podcast para você exercitar sua raiva: Collor versus Collor, idealizado pela Evelin Argenta e produzido pela Globoplay em parceria com a Rádio Novelo. A série conta como uma briga familiar motivou o impeachment de Fernando Collor, o 1º presidente eleito por voto direto após a ditadura militar e dá muita raiva (mas tem uns episódios engraçados também ou eu ri pra não chorar).
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos na próxima prosa,
Um beijo, se cuide.
Dia Nobre
Amei!!!
Na minissérie "Como viver até os cem", da Netflix, uma senhorinha de 101 respondeu que é só não sentir raiva (dentre outras coisas). Socorrooooooo haha.
Amei seu texto!