#1 Escrever como quem sonha
Na prosa de hoje eu conto dois sonhos recorrentes que tenho desde os 16 anos, falo sobre como uso esses fragmentos na minha escrita e como os sonhos são bons para alimentar histórias.
“Então, tudo isso é parte de um sonho? Não sei, você decide, disse o Coelho Branco.” Se Alice tivesse feito essa pergunta de cara, ao invés de pular no buraco do Coelho, então não haveria história para contar.
Eu sempre sonhei muito e de forma vívida. E sempre gostei de escrever. Meus primeiros exercícios de escrita, ainda criança, foram transcrições de sonhos. Em todos os meus diários (apesar de já ter perdido alguns em mudanças ou ataques de raiva) a primeira entrada do meu dia é quase sempre a descrição do sonho da noite anterior.
Um elemento sempre aparece nos meus sonhos, ao menos, em 90% deles: A casa. Não é uma casa qualquer, é a casa da minha infância. Bachelard em seu Poética do Espaço diz que a “a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz”, mas nos meus sonhos, A casa é um espaço obscuro, um espaço pesadelar. Às vezes, ela aparece como eu me lembro dela: uma casa simples, três quartos, um corredor com jardim interno, a sala de visitas, uma sala de jantar conjugada à cozinha, uma despensa de mantimentos, um banheiro e um pequeno quintal onde ficava a lavanderia. Noutras vezes, ela surge como uma casa abandonada em péssimas condições, muito raramente, é uma casa bonita ou em bom estado. Mesmo nos sonhos em que me aventuro por ruas e estradas, sempre estou saindo ou indo em direção à casa.
Entre os sonhos que coleciono, dois deles que tive no início da minha vida adulta são bem marcantes e reverberam até hoje.
No primeiro, eu sou uma adolescente e encontro minha avó paterna (que morreu quando eu tinha cinco anos). Estamos sentadas na calçada em frente da casa. Ela é muito magra e usa um óculos escuros apesar de ser noite e a iluminação ser feita pelas luzes amarelas dos postes (lembro que ela perdeu a visão muito jovem). Minha avó veste um vestido preto estampado que de tão justo ressalta seus ossos. Pensando bem, ela é quase um esqueleto com cabelos pretos que estão soltos sobre os ombros. Em determinado momento, ela se levanta e eu a acompanho. Caminhamos um pouco pela estrada de terra e eu quebro o silêncio. Pergunto como é a morte. Ela me responde vaga: “é como um sonhar eterno”. Eu faço outra pergunta: “Eu vou morrer jovem?”. Ela para e me olha, ou melhor, gira o rosto em minha direção (não sei se no sonho ela recuperou a capacidade de enxergar) e me diz muito séria: “Você vai viver até os 83 anos”. Bem, hoje eu tenho 39, então, quem viver, verá.
No segundo sonho, estou cercada de água por todos os lados. Não vejo muito bem, não só por causa da miopia (se a tecnologia não avançar, há a possibilidade de que eu morra cega como a minha avó), mas porque é noite e só enxergo um diâmetro limitado, iluminado por uma lua cheia gloriosa. Percebo que estou em alto mar e não há nenhum indício de terra à vista. Na superfície, uma pequena agitação, não chega a ondear tanto, eu não sinto medo, mas não sei o que fazer. Flutuo na água, quase como se aquele fosse meu ambiente natural, até que algo passa perto de mim. É uma baleia jubarte que desliza ao meu lado soltando vapores de respiração. De repente, me dou conta de onde estou e o terror toma conta de mim: estou deitada no chão, no quintal da casa, e sobre mim desaba uma chuva grossa e pesada. Acordo coberta de suor mesmo tendo dormido com o ar condicionado marcando 18°.
Sidarta Ribeiro em O oráculo da noite fala que “o sonho é feito de fragmentos da memória […] a matéria do sonho são as memórias, ninguém sonha sem ter vivido” e eu que só lembro da minha avó no caixão e só vi baleias na televisão, me pego pensando que a avó e a baleia, talvez, sejam a mesma coisa: uma boia salva-vidas, alguém (meu inconsciente?!) que me dá esperanças e diz, você não morre tão fácil, menina, ainda tem muito que fazer (escrever) na vida. Faz sentido?
De todo modo, foram os sonhos, os responsáveis pela minha sobrevivência, tanto no sentido do desejo, tanto no sentido do devaneio. Enquanto eu crescia, os sonhos, mesmo os mais inquietos, eram melhores que a realidade.
Meu livro de contos, No útero não existe gravidade, foi composto justamente a partir de sonhos, memórias e fotografias. É um conjunto de textos em que usei muitas entradas de diários da adolescência e do início da vida adulta. Foi uma experiência intensa e exaustiva porque mesmo quando não lembrava do sonho, eu sabia que havia sonhado porque ele estava escrito ali, com minha letra, no meu caderno. Teria eu sonhado que escrevi? Eu inventei aquele sonho? O que era sonho e o que era a lacuna que preenchi com o repertório do momento em que escrevi?
Sonhar e escrever estão intrinsecamente ligados para mim. É na escrita que eu elaboro o onírico e é nela que eu deposito o meu desejo de um futuro melhor para a criança que eu fui e que está presa na casa da infância. Ainda não sei como tirá-la de lá. Não sei se um dia ela vai poder sair, se deixarei de sonhar com aquela casa, se sonharei com outras casas, mais felizes. Enquanto isso, eu continuo escrevendo e é assim que eu pretendo viver (quem sabe até os 83 anos). Os sonhos, ainda que inexplicáveis são matérias para as histórias.
O que ando fazendo
Alguns de vocês sabem, estou no CLIPE Prosa da Casa das Rosas desde fevereiro. O módulo deste mês foi com o Rafael Gallo e falamos sobre construção de personagens. Eu criei duas irmãs siamesas, personagens de um conto que estou escrevendo para um projeto futuro. Compartilho um trechinho aqui com vocês:
Maitê sabia que não era Milagre e Milagre refletia essa crença no espelho invertido de seu cérebro. Somos duas e não uma, elas repetiam, e seus sonhos, desejos e pensamentos aconteciam na primeira pessoa do singular. Nenhuma delas jamais referiu-se a si mesmas como nós. Embora compartilhassem a coluna, os pulmões, o coração, o corpo inteiro, Maitê não achava justo que aquele corpo perfeito fosse controlado por Milagre que tinha a cabeça mais fraca. Se o preço para viver era manter aquele apêndice gigante, ela se conformaria, mas não deixava de pensar que se Milagre morresse, talvez ela passasse a controlar o corpo.
Também fiz um curso muito interessante sobre Sonhos, literatura e psicanálise com a Tatianne Dantas e a Aline Aimée. Elas falaram sobre como o sonho foi estudado na psicanálise e aproveitado na literatura a partir de Jorge Luís Borges, Silvina Ocampo e Maria Gabriela Llansol. Super inspirador e produtivo. Elas também reavivaram meu amor por Remedios Varo, uma pintora mexicana que conheci em 2018, quando estive na cidade do México, e dei a sorte de ver uma mini exposição das obras dela por lá. Aproveito para deixar uma das minhas preferidas:
Seguindo os sonhos nas telas, na literatura e na música
Dois filmes sobre sonhos me impressionaram muito quando os assisti (ainda hoje impressionam), ambos de 2001: Mulholland Drive dirigido por David Lynch:
E Waking Life, dirigido por Richard Linklater:
Pra quem gosta do estilo, tem esse K-Drama sensacional: While You Were Sleeping (2017) que conta a história de uma mulher que prevê o futuro enquanto sonha. Está no Viki. ;)
Um livro que indico:
In the dream house de Carmem Maria Machado (2019). No Brasil saiu pela Companhia das Letras com tradução de Ana Guadalupe.
O livro de memórias aborda o relacionamento abusivo que a autora viveu, mas também fala da casa que sonhamos ter e tudo o que ela envolve (segurança, amor, família) e nos lembra como é difícil sairmos de casas pesadelares. Como diz a blurb do The New York Times, é de tirar o fôlego.
E por fim, uma playlist colaborativa só com músicas que falam de sonhos (em seus variados sentidos e ritmos), embora, eu não recomende dormir ao som dela. Fiquem à vontade para incluir músicas da sua preferência:
Essa é a primeira newsletter oficial do Dia de Prosa. A ideia é que ela seja quinzenal, mas pode ser que você receba um texto semana que vem ou só daqui um mês. Não crie muitas expectativas, eu tenho um transtorno de humor que interfere um pouco na execução dos meus projetos. Mas uma coisa eu prometo, eu não te abandono, se você não me abandonar. :)
Até a próxima!
Adorei sua carta! Me identifiquei muito com a parte de a vida ser melhor no sonho. Eu também tenho muitos sonhos lúcidos, sonho muito com as casas onde morei na vida (mas pra minha sorte nunca foram pesadelos) e às vezes penso que vivo uma segunda vida onírica, tamanha a realidade desses sonhos.
Já pensei em escrever sobre isso mas nem sei por onde começar!
Espero que algum dia você encontre uma casa em um sonho alegre, é que a criança que você foi passe a habitar por lá. :)