#17 A fofoca e a literatura
Uma boa fofoca pode produzir muitas histórias ou a fofoca como uma metodologia para a escrita de ficção.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de blog. Me dedico mais às questões sobre escrita, literatura, saúde mental, mas vez ou outra você vai ler um drama desabafo pessoal também. ;)
Você está sentada no banco de uma praça junto a um amigo. A coluna curvada, os ombros quase em contato com os do companheiro, os braços alçados à altura da cabeça parecem formar uma concha protetora pendendo em direção aos ouvidos dele e antes que a voz saía (baixa, mas não o bastante) você ainda olha para o lado, interrogativa, procurando saber se mais alguém além do seu interlocutor ouvirá a confidência.
A imagem de um jovem escritor sentado em um banco perpendicular ao seu cruza o horizonte e sem querer a fofoca acompanhada de risos e gestos de surpresa ecoa nos ouvidos de quem não devia. Mais tarde, ela se transformará em palavras numa crônica, conto, até um romance, se for uma fofoca muito boa.
A historinha que imaginei surgiu durante a primeira aula da Cristina Judar no Clipe Prosa, no ano passado, quando um colega (não vou citar o nome aqui) disse que sua literatura era inspirada por fofocas. Imediatamente, minha cabeça de pesquisadora já imaginou um tema: a fofoca como uma metodologia para a escrita de ficção.
Quantos livros fizeram sucesso a partir da comichão da fofoca? Se você nunca quis saber se Capitu traiu Bentinho, atire a primeira pedra!
A gente sabe que a fofoca popularizada nos programas de auditório e nas páginas da #choquei não possui compromisso com a verdade, mas longe de ser algo puramente ruim, dependendo do contexto, pode ser extremamente edificante. Quem estudou História também sabe: a verdade é uma criação e nela há mais imaginação e invenção do que alguns historiadores mais conservadores gostariam.
“Diz o Dicionário Houaiss que o termo é provavelmente de origem Banto, o que nos confirma Emmanuel Saraiva, embora exponha seu étimo de dupla fonte: FOFOCA (banto) — substantivo. Intriga, mexerico. O étimo é discutível. Alguns etimologistas admitem ser do quimbundo fuka, revolver; outros do bundo fwafoka, invólucro vazio” (ZACCHI, s.n, p. 57).
A fofoca sempre envolve um outro. O termo remete a mexerico, mexer ou se meter naquilo que não é chamado, futricagem, fazer uma intriga, contar um conto aumentando um ponto. A fofoca atravessa os ouvidos e chega ao cérebro gravando a informação em milhares de neurônios que excitados fazem o corpo inteiro estremecer. A tensão criada antes da escuta se desfaz em um gesto de surpresa, asco ou regozijo a depender do conteúdo.
Além de um gesto, a fofoca é uma linguagem.
Ela tem capacidade de criar intimidade entre pessoas que nunca se viram, de estabelecer uma relação de confiança (quase de afeto) entre o fofoqueiro e o seu ouvinte.
Recentemente, espalhou-se o fenômeno da hashtag #fofocaliterária em que influenciadores das redes sociais contam uma fofoca que na realidade é o enredo de um livro (geralmente, um livro que está sendo lançado e que envolve CEO’s e secretárias sedutoras). Essa é uma prática que eu, pessoalmente detesto, mas verdade seja dita, engaja bastante.
A fofoca é um bicho híbrido e não necessariamente é uma mentira, mas pode não ser uma verdade inteira. Quem conta pode exagerar, florear, preencher as lacunas. Uma boa fofoca segue um dos guias máximos da narrativa histórica ou literária, ela tem que ser verossímil para ser repassada e, portanto, fazer circular o prazer (da narrativa). A fofoca é um relato em trânsito, “um relato posto em cena […] na fofoca, mesmo a transmissão mais fiel é desviante”, como diz André Zacchi (p. 61).
Historicamente, a fofoca também mantém uma íntima relação com as fake news, embora eu acredite que são diferentes em sua essência. Lembremos: a fofoca mantém sua relação com a verossimilhança. Dizer que “a terra é plana”, por exemplo, não é uma fofoca, mas uma mentira. Enquanto uma (a fofoca) vence pelo prazer de circular histórias, a outra ganha por ser um elogio da burrice (meme do Caetano Veloso aqui), mas esse é um tema pra outro texto.
E aproveitando, eu tenho uma fofoca para contar sobre o meu primeiro romance. Aguardem!
(Ah sim, a fofoca também tem função de criar expectativas).
Referência do texto: ZACCHI, André Piazera. A literatura é uma fofoca. In BERNDT, C. V. [et al.] E-book. Florianópolis, s.s., 2019.
Outras prosas
Tenho estado menos por aqui (inclusive, várias newsletters atrasadas - leitura e escrita) porque março foi um mês infernal: encerramento de semestre, trabalhos para corrigir, notas para colocar no sistema (não aguento mais essa vida!). Abril não deverá ser tão fácil já que o novo semestre começa e tem disciplina para preparar, mas espero entregar o texto (que já está rascunhado) sobre Dicas de como pesquisar.
Quem me segue no Instagram já sabe que virei sacerdotisa do livro As mulheres de Tijucopapo, da Marilene Felinto (Ubu Editora). Em breve vai rolar um post ou um vídeo, ou os dois, ainda estou processando a intensidade dessa leitura. Leiam e me agradeçam depois!
Assisti Anatomia de uma queda e gostei muito. O filme é longo, mas não é cansativo (ao contrário de Oppenheimer) e adorei a condução da narrativa, com destaque para o Messi que é mesmo um amor.
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos em breve,
Com amor e curiosidade,
Dia Nobre
essa newsletter me lembrou muito o quadro "fofoca na calçada", do podcast "hoje tem". eles chamam fofoca de "partilha" e sempre tentam tirar algo de edificante das histórias.
Dia, adorei essa tua news heeheh! Fiquei refletindo o quanto de fofoca está presente nos livros, nas histórias que criamos e por aí vai! Quero muito assistir o filme que tu indicou, "a anatomia de uma queda" e já acrescentei na minha listinha o livro que tu mencionou!