[…] como se vivesse com alguém que tenta assustá-lo o tempo todo pelas costas.
Claudia Durastanti, A estrangeira
Tenho poucas fotos de quando era criança.
Em uma delas, estou apoiada sobre uma almofada azul numa cadeira de metal que parece ser extremamente desconfortável para uma bebê. Devia ter poucas semanas de nascida, pois do umbigo ainda pendia o esparadrapo que indicava um laço rompido.
A bebê que eu fui tem a mão direita apoiada no queixo e os olhos bem arregalados, elevados para algo ou alguém fora do enquadramento do fotografo. É um retrato do espanto.
Quando eu mostro essa foto a alguém, costumo brincar que essa bebê olha aterrada para o futuro, antevendo os enormes desafios que iria enfrentar.
Hoje, quando me coloco diante da folha em branco, sinto que meu rosto ganha uma feição aproximada a essa da foto. A página onde nada foi escrito é um verdadeiro assombro. Me sinto atraída por esse assombro porque ele não significa uma ausência, mas um horizonte de possibilidades, embora, a imagem do horizonte não sirva para explicar o que sinto quando escrevo. A melhor imagem, talvez, seja a do looping. Algo assim:
Não, brincadeira. Estaria mais pra essa aqui:
Quem leu meu livro No útero não existe gravidade, deve ter percebido que a imagem espiralesca perpassa todos eles, alguns em círculos mais suaves como um carrossel; em outros, de forma mais violenta, como um redemoinho ou uma queda. Sou obcecadas por histórias que terminam resgatando o começo de tudo feito cobras mordendo o próprio rabo (sim, o oroborus é um clichê, paciência, a literatura também é feita deles).
Algumas escritoras e escritores funcionam com fórmulas de jornada do herói, esquemas de construção de personagem, escaletas, mas eu não consigo usar nada disso. Também não consigo estabelecer metas de escrita: “escrever tantas páginas ou caracteres” ou “escrever todos os dias pela manhã”. Teve um período que isso me incomodava. Queria ter um horário certo para escrever, queria ser mais disciplinada. Me forçava e no final não saía muita coisa. Faltava o imprevisível.
Com o tempo, acabei entendendo que a escrita, no meu caso, se relaciona muito ao bem-estar, a não-cobrança. Meu sol em Aquário me diz que não adianta eu forçar quando não estou bem, e, principalmente, não funciono com regras e limites. Minha escrita tem que ser prazerosa, ainda que os temas não o sejam.
Os momentos de hiato, em que não consigo escrever, podem ser bem inquietantes. Tento ler, assisto séries ou filmes, jogo vídeo game, brinco com meus gatos. Para uma escritora, escrever pode ser muitas coisas, inclusive, matar zumbis em algum jogo online.
Quando decido me aproximar da tela em branco, arrumo a mesa do escritório, acendo um incenso, coloco um ruído branco e deixo fluir. Permito me fascinar com as possibilidades do texto, me maravilho com as palavras novas que surgem por acaso. Outro dia, passei horas seduzida pela palavra acachapante e me desafiei a usá-la em um conto.
Acachapante é algo esmagador-irrefutável-indiscutível, assim como o espanto. Aliás, a literatura é a única coisa que ainda me causa espantos e olha que eu nasci na década de 1980 do século mais asssombroso da História (segundo o historiador Eric Hobsbawn).
Nós, millenials 35+ passamos pelo final da Ditadura militar, Diretas já, o impeachment do ex-presidente mais lindo que já existiu (já viu o Collor versus Collor?), a mudança de uma moeda, a virada do milênio, a faca dentro do boneco do Fofão, o demônio na boneca da Xuxa, a banheira do Gugu etc. Eu poderia passar horas listando a quantidade de coisa que já me espantou na vida.
Dentre essas coisas, a literatura é a única constante. A única que nunca deixou de me espantar: antes, como leitora, agora como escritora.
Voltando aos processos de escrita, acredito que eles são únicos e subjetivos (mesmo para quem usa fórmulas) e talvez, nós devêssemos confiar mais naquilo que não podemos ver, naquilo que precede o ato de escrever em si. Confiar na possibilidade do mistério. Buscar o espanto.
Quando eu duvido da minha capacidade criativa, procuro a foto da menina espantada com algo que estava ao alcance do seu olhar. O texto está ali, só preciso encontrar uma forma de vê-lo.
Um conto do meu livro para você que ainda não leu (vai que):
Entrei no quarto e Polly estava ao lado da cama olhando pro travesseiro preciosamente arrumado sobre o lençol esticado. Polly, você devia estar deitada! A menina não se moveu. Polly? Me aproximei, toquei de leve o ombro enrijecido sob a camisola de seda branca. Polly virou o rosto lentamente. Da sua boca saíam pequenos animaizinhos. seriam joaninhas ou besouros? Os observo, buscando a resposta no caminho gosmento que eles deixam. Pisco os olhos, balançando a cabeça em negação e lá estava o rosto pálido de Polly.
O que você está fazendo de pé, Polly? Você precisa descansar, vá pra sua cama, vou lhe trazer uma sopa. Não, não quero sopa. Abraço-a com cuidado, como se carregasse uma bandeja de taças de cristal. Eu sei, eu sei. Você sente falta dela. Eu também sinto. Olho pra cama impecável e vazia.
Conduzo Polly à cama do outro lado do quarto e a deito. Tiro um cacho loiro que insistia em cair sobre os olhos. Eu sinto a presença dela. Como assim? Não sei, deve ser coisa de gêmeas. Acordei com ela me chamando. Mas você sabe que foi um sonho, não sabe? Infelizmente, ela não está mais aqui. E se eu estiver sonhando agora? Se tudo isso é um pesadelo horrível onde minha irmã está morta? Oh, meu bem, eu queria que estivéssemos em um sonho, que nada daquelas coisas terríveis tivessem acontecido e que ela estivesse aqui conosco. Iríamos tomar café com bolo de milho na cozinha e rir da vizinha correndo atrás dos cães que atacam as galinhas, mas não é um sonho. Polly sentou-se na cama, inquieta.
Como você tem tanta certeza?
O quarto começou a girar. Polly se desfazia na minha frente, primeiro o cabelo loiro desprendeu-se da cabeça revelando um couro cabeludo quase transparente. Depois, os olhos saltaram e flutuaram ao seu redor. O nariz caiu e os dentes saíram um por um da boca escancarada de Polly que agora era uma caveira risonha. Pensei que afinal, aquilo poderia ser um sonho e fechei os olhos bem forte. Girava dentro daquele tornado. Me agarrei na borda da cama pra não cair. Embaixo, um oceano de vazio e tristeza prestes a me devorar. O giro parou de repente.
Abri os olhos e estava na cama. Polly olhava pra mim. A boneca na mão. Vou deixar Sueli aqui pra você ficar logo boa, tá bem? Olhei pro meu corpo retesado. O lençol coberto de joaninhas. Tentei gritar, mas a voz não saiu. O giro recomeçou.
Estou deitada dentro de um caixão. A tampa fechada. Pelo vidro vejo Polly com sua boneca. Chorando. Depois vejo a mim mesma abraçando a menina. Minha gêmea olha diretamente pra mim e esconde a cabeça de Polly em um abraço. Bato no vidro, mas ninguém parece escutar. Me contorço dentro do caixão. As pessoas começam a jogar terra em cima. Outro berro mudo.
Abro os olhos. Estou tremendo e coberta de suor. Sentada na poltrona do quarto das gêmeas. Uma delas dorme profundamente agarrada à uma boneca. A outra, tem cânulas nos braços ligando-as a um soro. Me levanto e vou checar a menina. O soro acabou, precisa trocar. Afasto delicadamente os cabelos que lhe cobrem o rosto. Da sua boca aberta, escapa uma joaninha e seus olhos estão brancos como a seda da camisola.
Outras prosas (e assombros):
Li Os perigos de fumar na cama, da Mariana Enriquez, com tradução de Elisa Meneses, recém-lançado pela Intrínseca. Alguns contos me pegaram muito porque se relacionam com os temas que eu pesquiso: mulheres, corpo, religião. O desenterro da anjinha, O poço, Carne e o conto que dá título ao livro são os meus preferidos entre os 12.
Ainda sobre Mariana Enriquez: gostei muito dessa estrevista feita pelo Oscar Nestarez na Galileu. Em um momento ela fala: “Me interessa a ideia da história que volta como fantasma” e eu pensei muito no Michel de Certeau quando ele diz que o passado é um morto e cabe a nós, historiadores, velá-lo. Escritoras ou historiadoras, estamos sempre vivendo um luto e nos assombrando com os fantasmas.
Sexta passada estava exausta e me dei um dia de folga. Maratonei a série alemã Liebes Kind que está na Netflix (no Brasil ficou Depois da cabana). O drama apresenta uma mulher que foge de um cativeiro e chama a atenção da polícia para outro desaparecimento, ocorrido 13 anos antes. Mas o foco da história é em uma menina, supostamente filha do sequestrador, que une o passado ao presente através de suas memórias.
Múmias de extraterrestres, adolescentes fazendo cosplay de idiota em lives de NPC, desastres naturais e o aquecimento global matando a humanidade. Reuni tudo o que deveria me causar espanto em um post do instagram sobre a apatia diante da exaltação de idiotas nas redes sociais.
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos na próxima prosa,
Um beijo, se cuide.
Dia Nobre
Se escrever e ler não me dessem espanto, eu já teria parado há tempos... Adoro sua prosa. Beijo
Você escreve divinamente bem!! 🤍🤍🤍