#9 O corpo, o tesão, a vida (Edição extra)
Um texto mais pessoal sobre escrever o desejo e as fantasias que realizamos na literatura.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de elaborar questões sobre escrita, literatura, saúde mental y otras cositas que me interessam.
Esta é uma edição extra.
Assina e indica para as amigas. <3
Eu estou em um período bem complicado em termos de criatividade. Presa aos enredos dos dois livros que vou lançar ano que vem (assim, espero!) que nada tem a ver com outras coisas que quero escrever no momento. Ambos os projetos estão com as editoras e eu aguardo impacientemente o momento em que começaremos a editar, momento esse que depende de calendários que não são meus (são duas editoras grandes, o processo é lento). Lembro de ter lido em alguma carta da Clarice Lispector que esses momentos de espera eram uma tortura para ela porque depois que ela terminava de escrever, não queria mais ver o texto. Me sinto um pouco assim. Queria que já estivessem publicados e pronto: eu voltaria a me sentir livre para escrever outras coisas; pensar no próximo livro que já está meio formatado na minha cabeça, uma coletânea de contos de horror (ou quase) com protagonistas adolescentes onde o corpo é o cerne de todas as narrativas. Esse corpo meio desconjuntado que temos na adolescência, sempre imperfeito.
Estava meio travada (tenhos uns 5 contos desenhados), mas mês passado tive aula com a Amara Moira no CLIPE da Casa das Rosas e ela trouxe várias provocações para pensarmos a escrita a partir da literatura erótica. Um jeito novo, para mim, de pensar o corpo. Como historiadora, eu sempre pensei o erotismo a partir da religião, da experiência mística. Como mulher, nunca me encontrei dentro da pornografia, nem da que se diz “feminista”. É um produto que não costumo consumir.
No primeiro exercício, ela pediu para escolhermos uma parte do corpo que não fosse óbvia e partisse dela para criar uma cena. Eu escolhi o estômago e desenvolvi o tema em um conto sobre irmãs siamesas que já estava iniciado. Não vou falar sobre esse conto ainda porque é algo que quero desenvolver com calma no futuro.
Para não perder o exercício, comecei um novo conto partindo do pescoço. Mãos e pescoço são as primeiras coisas que eu olho em alguém. As mãos precisam ser bem cuidadas, sem nós grossos, delicadas, unhas feitas (pessoas, cuidem das mãos, please!). Gosto de um pescoço alongado, firme ao toque das mãos que podem seguir livre até a nuca e agarrar um bom punhado de cabelo. Um pescoço em que a gente possa meter o nariz e cheirar longamente, em que a língua possa deslizar sem medo até chegar no lóbulo da orelha enfeitada com um brinco que você prende entre os dentes e puxa só na medida da dor que também é prazer.
Me mexo na cadeira enquanto escrevo isso e percebo que estou excitada. Mas não é (somente) o tema que me excita. É o desafio da escrita. É observar o texto crescendo (sem trocadilhos) enquanto digito quase sem parar ou parando somente pra sentir o calor no baixo ventre. Escrever me dá um tesão imenso. Mexe com meu corpo, me faz sentir viva.
Talvez, por isso, esperar a publicação de algo que para mim já está pronto não tem tanta graça porque é como fumar um cigarro depois de um sexo maravilhoso. Acabou. Pra chegar ao clímax é preciso começar de novo. E de novo. E mais uma vez. Okay. Talvez eu tenha um problema. Preciso de estímulos constantes. Costumo colocar a culpa disso no meu signo, sempre em busca do novo, me entediando facilmente com a rotina, com o que já é conhecido; desenvolvendo obsessões que só cessam quando plenamente satisfeitas (para o bem e para o mal) mesmo que isso leve tempo, anos, não importa. Com as minhas obsessões eu consigo ser paciente porque elas me alimentam. As deusas me livrem de não estar obcecada com algo (ou com alguém).
Escrevendo um conto erótico: uma experiência
Fui criada como uma boa menina cristã que até os 20 e poucos anos tinha vergonha de falar palavrão (acredite). Meninas são sempre desencorajadas a conhecer o próprio corpo, então, eu aprendi sobre corpo e sexo com o livro da Marta Suplicy, aquele com uma maçã mordida na capa. Tudo muito escondido, em segredo. Não tive grandes experiências na adolescência nem no início da vida adulta. Era tudo meio estranho, meio deslocado, não importa com quem fosse, meninos ou meninas, sexo era uma coisa esquisita.
A cultura religiosa teve um peso muito grande na minha vida, a coisa da culpa, do pecado, do inferno. Eu tinha vergonha de usar o verbo chupar. Me parecia obsceno. Eu nunca dizia: vou chupar um picolé, mas vou comer um picolé. Lamber também me soava pornográfico e minha pudica criação me impediu de gozar a beleza dos vocábulos, mas quando a gente se permite… até o gosto das palavras é diferente. Para chegar aqui, foram anos de terapia.
Eu nunca tentei escrever um conto erótico, mas quando fui desafiada, me surpreendi com a dificuldade que senti, já que (citando mal a Ana Cristina César) “agora não sou mais, veja, não sou mais severa e ríspida: agora sou profissional” e sexo não é mais um problema na minha vida. Tive receio de cair pro descritivo ou pro cafona como todos os alguns livros hot do mundo.
Contei um pouco sobre esse processo no Instagram e uma leitora me pediu para explicar melhor, como uso as referências e os comandos para construir um texto, então essa carta é também, uma resposta a ela.
Comecei o texto tomando dois motes: a parte do corpo escolhida, o pescoço; e um verbo: lamber; não pretendo escrever uma cena de sexo, mas uma história marcada pela tensão sexual, levando a narrativa para o horror. Não pensei muito na composição dos personagens. A cena para mim, sempre vem em primeiro lugar, depois eu desenho os personagens.
O segundo passo foi fazer uma busca visual de imagens que poderiam me inspirar e meu moodboard ficou assim:
Pode parecer que as imagens não conversam, mas dispostas assim, elas fazem muito sentido para mim. A história já está aí.
Depois eu fiz uma escrita livre que ficou muito ruim para o meu gosto e na reescrita saí riscando todos os verbos que acho muito clichês: arrepiar, deslizar, excitar etc. Na reescrita sobraram três parágrafos que compartilho aqui. Ainda não está bom, acho que falta algo, mas é um exercício, está valendo:
Sem título
Posso te chamar de você? Nunca tinha reparado muito nele, mas aquela pergunta mudou tudo. Foi o tom de voz, eu acho. Tinha autoridade naquele tom. Me desarmou inteira. Quando eu fico nervosa, minha orelhas ficam muito vermelhas. O cabelo que estava preso em um coque despencou pelas minhas costas.
Sentamos lado a lado, os braços pousados sobre a mesa, muito sérios e profissionais. Quem encostou primeiro? Não faço ideia. Quero ignorar. Prestar atenção no que tenho que fazer, mas não me movo nem um milímetro. Fico ali com aquela pele queimando a minha. Desse silêncio sinto raiva e cruzo as pernas. Só percebo quando vou ao banheiro. A calcinha branca tão molhada que não dava mais pra vestir.
Nos olhamos quase testa a testa. Não havia ninguém além de nós no estacionamento quando ele puxou o pirulito que eu tinha na boca e colocou na dele. Estiquei meus pés em salto e agarrei sua nuca. Ele não se moveu nem um passo. Lambi a tatuagem com a saliva de cereja pintando vermelho pelo pescoço. A jugular saltando nos meus dentes e de novo, aquele tom de voz: Morde.
Eu espero que você que leu até aqui não esteja esperando um conto pronto, ainda não está. Ontem eu escrevi mais alguns parágrafos e deixei ele descansar no meu caderno. Preciso reescrevê-lo até que eu sinta que estou acertando o tom. Por enquanto, a coisa está caminhando para algo vampiresco, deve ter dado para perceber.
Na verdade, nem importa quando eu vou terminá-lo. Se eu vou terminá-lo. Importa que eu abri uma possibilidade que até então era silêncio em mim. Não há lugar melhor para materializar os desejos que a literatura.
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos na próxima! Um beijo, se cuide.
Dia Nobre
Você é aquariana? Eu sou e também me sinto assim, entediada, em busca do novo... E tenho encontrado na literatura uma forma de ser outras e outras.
Muito bom!!! Amei tudo.