#8 Escrever como quem costura
Nesta carta eu reflito sobre o meu processo criativo a partir de uma imagem que gosto muito: a da costura.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de elaborar questões sobre escrita, literatura, saúde mental y otras cositas que me interessam. A ideia é que ela seja quinzenal, mas como sou Aquariana e Borderline, vai depender do meu humor. ;)
Assina e indica para as amigas. <3
Passo a linha pelo buraco da agulha. Estico-a no comprimento desejado e corto com uma tesoura afiada. Uno as duas pontas e umedeço-as com saliva, dando um nó com a ajuda do polegar e do indicador.
Alinhavo com cuidado o tecido estendido sobre a mesa seguindo o molde previamente cortado. A agulha passeia entre meus dedos longos com destreza.
Há uma memória que precede o movimento.
Costurar é como escrever, ou antes, toda escrita é costura.
A gente pega os retalhos das referências, das influências, daquilo que nos inspira: moldes-vieses-apliques-barbatanas-sobras, repousam sobre a mesa, aguardando o momento de serem usados. Nós somos aquilo que lemos e isso me fez pensar nas referências que acumulamos ao longo da vida e que embebemos* nos nossos próprios textos:
[…] Saquear todo tipo de texto: verso, propaganda, teoria, música, Wikipédia, manuais. Esquecer as influências. […] Vislumbrar em qualquer material uma outra forma de uso. Ter uma ideia. Tomar para si. Começar o corte. Colocar em teste. Repetir, mais uma vez.
diz Taís Bravo em seu ensaio publicado na Totem-Pagu.
“Se eu roubei, então é meu”
afirma Paulo Lins**, autor de Cidade de Deus, que brinca de construir seus textos em cima de narrativas clássicas da literatura brasileira. Referência se torna reverência.
A operação do corte, remendo, combinação de tecidos, texturas e cores fala do próprio de ato de escrever como um lugar de corte. Muita gente fala que a escrita se faz mais da subtração do que da adição: cortar é preciso. Franzimos o texto pra que ele fale do que nos incomoda.
Mas, às vezes, é preciso adicionar algo que não é seu. Um botão emprestado da roupa de outra pessoa. Só porque encaixa. Só porque parece que aquela pessoa escreveu para que você pudesse usar depois:
RV - Achei engraçado uma coisa que li numa entrevista sua. Isso de roubar frases de outros autores e colocar nos seus livros…
TSL - Hoje mesmo roubei uma frase para esse romance que estou terminando (Vista Chinesa). Era uma coisa que eu pensava usar como epígrafe do livro, mas depois achei que não funcionava. Então, peguei a frase e coloquei lá no meio do texto.
RV - E de quem é a frase?
TSL - Não vou falar. (risos)***
Que interessante, eu pensei, esses roubos literários, esse saque de ideias e palavras que transformam uma coisa em outra, tomando emprestado palavras alheias. Pensei em um método: a escrita como uma gambiarra, uma colcha de retalhos que de tão imperfeita se torna haute couture.
Gostei disso porque mostra que ineditismo não existe e o que muda mesmo é a forma como a gente fala e, talvez, daí venha a tal da originalidade: o vinco que aparece quando a gente descobre a nossa voz narrativa.
Qualquer pessoa que coloque a caneta sobre o papel carrega uma infinitude de histórias já contadas, modelos que copiamos das revistas de moda. O que torna o texto singular é usar essas referências com intenção e consciência, costurando essa peça com nossas próprias linhas.
Clarice Lispector refletiu sobre isso, em uma carta enviada a Lúcio Cardoso, e lembra que também é possível duas pessoas costurarem a mesma peça em contextos totalmente distintos:
E agora que estou lendo Proust, tomei um choque ao ver nele uma mesma expressão que eu tinha usado no Lustre, no mesmo sentido, com as mesmas palavras. A expressão não é grande coisa, mas nem sendo medíocre se chega a não cair nos outros. (Todas as Cartas, Rocco, p. 110)
Eu mesma caí nessa ilusão de originalidade ao criar uma cena do meu romance que acho muito boa (modéstia a parte) e que não tinha visto em lugar nenhum, mas recentemente, encontrei algo similar lendo uma autora brasileira que não tinha lido ainda. Mantive a cena porque os contextos são completamente distintos e nem mesmo as palavras são iguais, mas confesso que minha primeira reação foi de frustração como se eu tivesse errado uma costura e agora precisasse desfazer e remontar tudo de novo.
Me conformei com o pensamento de que existe um zeitgeist que une tudo em uma mesma trama. O que podemos aproveitar é a troca que se estabelece entre quem escreve e quem lê, tirando o peso de achar que a escrita é algo inalcançável ou que você vai inventar a roda da literatura.
Escrever é como costurar: se aprende na prática
Quando comecei a pensar na publicação do meu trabalho, me deparei com vários cursos que traziam fórmulas para escrever: a jornada do herói, o apego ferrenho às escaletas e às regras gramaticais, as malditas páginas matinais. Não me encontrava nesse universo, que deixo claro, tem sua importância e pode servir para muita gente, mas me inquietava ter que entrar em caixinhas para poder colocar minha literatura no mundo.
Em 2020 comecei a estudar a escrita de forma mais séria. Li um punhado de livros, a maioria deles, indicação da Anita Deak e do Paulo Salvetti no Podcast Litterae; participei de algumas oficinas: estive com Marcelino Freire durante cinco meses em um curso da Balada Literária; admirei Andrea del Fuego fazendo bruxaria com as palavras; frequentei a oficina de escrita da Aline Bei promovida pela Revista Capitolina; estudei com a Anita Deak e com a Nara Vidal e fiz mentoria com a Socorro Acioli; este ano, estou frequentando o CLIPE Prosa, um curso de escrita promovido pela Casa das Rosas (não está sendo tão bom quanto eu gostaria).
No geral, tive a sorte de contar com professoras e professores que possuem em comum uma visão estética sobre a palavra. O texto não está ali só para ser lido, mas para ser visto, experimentado, degustado.
Não consigo ver a escrita senão como um projeto que também é estético, ou seja, que corresponde a um projeto longo de compreensão da nossa própria obra. Que guarda-roupas que estou montando? Que legado eu vou deixar? O que minha obra pretende comunicar? Quais sensações ela desperta? Escrever não é só jogar um punhado de palavras em uma folha em branco, assim como, costurar não é só saber dar um ponto no tecido plano.
Para mim, a escrita enquanto projeto estético comunica mais, cria conexões e diálogos.
Importa o lugar da palavra na folha. Importam as letras minúsculas. Importa o espaçamento (o silêncio da memória) entre as linhas. Importa a pontuação. Um ponto final para quem teve uma vida cheia de vírgulas, importa muito.
NOTAS:
*Embeber no vocabulário da costura significa unir duas partes de tecido que possuem tamanhos distintos, de forma que fiquem com o mesmo tamanho sem franzir ou marcar o tecido.
** Anotação a partir da participação de Paulo Lins em uma aula de Marcelino Freire no curso Vivências Literárias em 13/10 no Itaú Social.
*** Entrevista concedida pela Tatiana Salem Levy ao Ricardo Viel no livro Sobre a Ficção (São Paulo: Companhia das Letras/ Tag Livros, 2020).
Outras prosas
Assisti na última semana duas séries muito boas: As flores perdidas de Alice Hart (estou preparando uma edição sobre ela) e a The fall of the house Usher. A maioria das pessoas na minha bolha não gostou muito desta última. O
escreveu sobre ela na edição 23 da e eu concordo com muita coisa, mas confesso que, pensando no universo do Mike Flanagan, achei a Queda da casa de Usher bem menos didática e literal do que Missa da meia-noite. A minha preferida ainda é A maldição da Residência Hill.Recomendo forte a newsletter
da . Na última edição ela falou sobre como se manter criativa a despeito da vida que se interpõe no caminho: “Se a criação está estéril, é porque alguma coisa na vida pede atenção. Não existe boa arte onde a vida não é exercida.”Gosto também deste ensaio da Zadie Smith em que ela divide as pessoas que escrevem em dois grupos: os macroplanejadores e os microgestores. Os primeiros são aqueles que organizam a narrativa através de notas, estruturas, escaletas, pois essa organização dá uma segurança na hora de escrever. É aquela pessoa que segue o molde passo a passo. Os microgestores, por sua vez, não possuem um plano porque possuem apenas o presente para escrever. Constroem linha por linha conforme o devir. Talvez eu me inclua nesta segunda categoria.
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos na próxima! Um beijo, se cuide.
Dia Nobre
Gosto demais essa sacada do saque na poesia contemporânea
Amei a analogia com a costura por minha mãe ter sido costureira. Obrigada por compartilhar o seu processo criativo, tão difícil encontrar o próprio e não cair nas artimanhas de se colocar em caixinhas, rótulos.