#19 Eu quero ser lida, mas não só depois de morta*
Sobre ler autoras contemporâneas e os livros que me deslumbraram nas últimas semanas.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de blog. Me dedico mais às questões sobre escrita, literatura, saúde mental, mas vez ou outra você vai ler um drama desabafo pessoal também.
Hoje eu falo sobre literatura.
Macabea precisou morrer para virar uma estrela.
Quantas mulheres não tiveram que morrer para serem notadas?
Rebecca Solnit começa seu livro A mãe de todas as perguntas (2017) com um ensaio sobre o silêncio. A história do silêncio, ela diz, está ligada diretamente à história das mulheres. Quando estudamos História, essa com h maiúsculo, não é difícil perceber o apagamento das mulheres.
Como ressalta Virginia Woolf em Um teto todo seu (1929), a História faz parecer que os homens nascem com uma capacidade de serem melhores do que as mulheres em tudo. Na cozinha, elas são cozinheiras, eles são chef; na moda, elas são costureiras, eles são estilistas; na escrita eles são universais, elas escrevem “literatura feminina” (como se o que as mulheres escrevem só interessassem a elas próprias).
Inclusive durante muito tempo, no Ocidente (após o processo de cristianização), não foi dada às mulheres, permissão de escrever obras públicas. Muitas ficavam restritas à escrita epistolar ou religiosa. As místicas do século XII só eram autorizadas a escreverem quando se tratasse de narrar as experiências ou fenômenos religiosos. Muitas doutoras da Igreja como Santa Tereza d’Ávila ou Santa Catarina de Siena só escreviam debaixo do olhar de seus diretores espirituais, daí o termo “confessional” que durante muito tempo se atribuiu à escrita feminina.
Por muito tempo na história ‘‘Anônimo’’ foi uma mulher.
Virgínia Wolf
Além disso, muitos registros históricos sobre a escrita de mulheres se perderam sob a pecha do anônimo ou dos pseudônimos masculinos como, por exemplo, o caso de Mary Ann Evans que durante muito tempo assinou como George Eliot; Charlotte Brontë que assinava como Currer Bell; Karen Blixen como Isak Dinesen e por aí vai.
No século XVIII, Mary Wollstonecraft elaborou um manual bem didático (Reinvindicação dos direitos da mulher, 1792) para explicar aos homens porque era importante que as mulheres tivessem direito à educação. Anos depois, sua filha Mary Shelley publicou a primeira versão de Frankenstein (1818) com o nome do marido e só em 1831 na terceira edição revisada, seu nome figurou como autora.
No Brasil, Julia Lopes de Almeida, uma das idealizadoras da Academia Brasileiras de Letras foi excluída das reuniões da ABL, pois a maioria dos fundadores, sendo homens, decidiram manter a Academia masculina à exemplo da Academia Francesa. O veto só caiu em 1977, com a entrada da escritora cearense Rachel de Queiroz.
Harold Bloom em seu conhecido livro, O cânone ocidental (1994), elenca a literatura que deve ser lida para, segundo ele, entender o zeitgeist do ocidente. São 26 escritores, dos quais apenas três são mulheres: Jane Austen, Emily Dickinson e Virginia Woolf.
No cenário educacional brasileiro, no que diz respeito ao ensino de literatura, por exemplo, temos uma lista de autores que são estudados pelos alunos do ensino fundamental e médio, dos quais, 94,8% são homens e apenas 5,2% mulheres, a saber: Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, Cecília Meirelles e Lygia Fagundes Telles, escritoras fantásticas sem dúvida, mas todas pertencentes a uma classe média, branca e hétero. Ainda que oprimidas pelo fantasma do “anjo do lar” por causa do casamento e da maternidade compulsória, essas mulheres tiveram oportunidade de escrever, serem publicadas e lidas. Tinham “um teto todo seu”, condições para produzir e criar.
Como a exceção só confirma a norma, a gente vê surgir uma Carolina Maria de Jesus vez ou outra, que a despeito de uma existência cujo objetivo primário era sobreviver nos dá a conhecer uma narrativa autêntica e magistral sobre o que é ser uma mulher negra em uma favela no Brasil. O que me lembra a chicana Glória Alzandua que, em oposição crítica à Virgínia, nos diz que devemos escrever em qualquer lugar, a qualquer hora porque é o que tem pra hoje.
E por falar em Carolina, acho imprescindível, falar que as escritoras negras são muito mais negligenciadas que as escritoras brancas, numa clara intersecção entre o sexismo e o racismo: Conceição Evaristo, Maria Firmina dos Reis, Maya Angelou, Octavia Butler, Toni Morrison, entre tantas, mulheres que até recentemente eram desconhecidas, mas que produziram obras-primas da literatura. Se para ser feminista nós precisamos ser antirracistas, como afirmam bell hooks e Lélia Gonzalez, digo que para falar da literatura produzidas por mulheres nós precisamos ler mais as autoras negras.
Precisamos também, ler autoras não-heterossexuais, transexuais, indígenas, nordestinas e nortistas. Sair do cânone é a resposta para encontrarmos um mundo repleto de novas experiências, modos de ver e viver o mundo, de sentir e vivenciar a existência.
Eu quero ser lida. E não só depois de morta. Eu também quero ler minhas companheiras contemporâneas e seus livros lindos que estão aí povoando o mundo. Eu quero compartilhar experiências e técnicas, quero estar em suas estantes e tê-las aqui perto de mim.
Ler mulheres é fazer a voz encontrar eco, ler mulheres é lutar contra o silenciamento de nossas histórias.
*Uma versão bem mais curta deste já foi publicada na minha página do instagram.
Autoras que vão explodir sua mente
Gostaria de falar um pouco das minhas últimas leituras que incluíram basicamente, autoras nacionais e uma latina hispanofônica.
Puro, Nara Vidal (Todavia, 2024)
A autora mineira já havia me surpreendido com Eva (Todavia, 2022) e agora pude ler seu mais novo lançamento. Não tenho palavras para dizer o quanto a escrita de Nara é fabulosa, nos dois sentidos, no de maravilhoso e no da construção da fábula/narrativa. Gosto dos experimentos, das formas, dos espaços na página, das letras maiúsculas.
Amo a forma como os pensamentos das personagens são revelados em contraposição às ações. Como você apresenta o desejo pela pureza como um desejo pela morte e o que é a pureza se não o desprezo pelas falhas e por tudo aquilo que nos torna humanos?
Me interessa ainda a obsessão dos pensamentos nos personagens: pequenos vermes abrindo caminhos para chegar ao centro do cérebro na ânsia de dominar o hospedeiro. A eugenia, essa ideologia parasita que nunca morre, que segrega, que exclui os loucos, as mulheres, os não-brancos e todos os que estão nas margens.Como se fosse um monstro, Fabiane Guimarães (Alfaguara, 2023)
A Fabiane tem essa capacidade de criar personagens que nos incomodam muito, mas que ao mesmo tempo, não conseguimos deixar de empatizar. Acho que neste livro ela conseguiu algo mais forte que no livro anterior (Apague a luz se for chorar, Alfaguara, 2021). O livro me prendeu do começo ao fim e li rapidamente, voltando depois em algumas partes.
O que eu mais gosto é que há uma clara distinção (e uma problematização não-panfletária) do que significa ser mulher e ser mãe e, apesar do livro ter um contexto sócio-histórico muito preciso, Brasília, década de 1990, isso não faz dele, um livro datado porque as questões que ela aborda (barriga de aluguel, tráfico de crianças) são contemporâneas.
Água Turva, Morgana Kretzmann (Companhia das Letras, 2024)
Morgana conseguiu elevar ainda mais a qualidade do seu trabalho com este livro. Eu já tinha lido seu primeiro romance (Ao pó, Patuá, 2020) e ficado impactada, mas neste, Morgana faz algo mais.
Ao tratar de questões ambientais super atuais, ela consegue criar um thriller policial imprevisível a partir da história de uma família que venera um ancestral quase mítico.
As personagens são tão bem trabalhadas que eu conseguia imaginar Chaya e Olga (na minha cabeça: Alice Carvalho e Letícia Colin) atuando na minha frente. É uma narrativa equilibrada entre descrições e diálogos que não cansa (uma meta para mim, como autora).
Os perigos de fumar na cama, Mariana Enriquez (Intrínseca, 2023). Tradução: Elisa Meneses.
Eu nunca vou cansar de indicar os livros da Mariana, minha deusa rockstar, e apesar, de sim, achar que aqui ou ali ela se repete um pouco (nem as deusas são perfeitas), eu acho que isso tem mais a ver com os temas que a obsessionam do que com falta de criatividade.
Reli este livro no final de semana passado e o elegi como meu livro preferido dela (de contos), mais ainda do que As coisas que perdemos no fogo e explico: neste, acho que ela consegue uma unidade de linguagem, de narrativa e de forma que não vejo no outro, apesar de ser excelente. É um livro curto, mas preciso. Toca nos pontos certos, não alonga a narrativa para fazer parecer mais denso. Ela nos pega por nocaute, como diria um dos meus contistas favoritos, o argentino Júlio Cortazar.
Diário: a mulher e o cavalo, Julia Raiz (Telearanha, 2023)
Por fim, degustei lentamente o livro da Julia Raiz, que tive o prazer de conhecer pessoalmente em abril, em um projeto do Sesc. O livro, meio diário, meio conto, fala sobre as obsessões que temos na vida e na literatura. E eu, como boa obsessiva me demorei longamente em cada texto, lendo mais de um vez, lendo em voz alta, lendo para um amigo, enfim, buscando entender que tipo de sortilégio ela usa para prender os leitores assim.
Outras prosas
Eu estive um pouco off das redes sociais porque não aguento mais ver as imagens do que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Sou muito empata e fiquei muito sensível, o que agravou minha depressão um pouco. Então me entreguei à revisão do meu romance e às leituras para salvaguardar um pouco da minha saúde mental. Todavia quero deixar o link da newsletter da
aonde ela lista como podemos ajudar, mesmo estando distantes:Outro texto que mexeu demais comigo foi o da
:Se você só puder ajudar uma pessoa, peço uma força para minha amiga
que perdeu tudo na enchente. A Tali é uma artista neurodivergente no espectro autista e mora com mãe em Porto Alegre. O link para contribuir é ESSE.Por fim, uma novidade: vou ministrar uma oficina na Balada Literária sobre sonhos e escrita, onde buscaremos entender como os sonhos podem ser abordados na narrativa literária e servir como matéria-prima para a escrita em qualquer gênero. Em breve, mais informações no site da Balada
A imagem da capa do post é do site Valkírias
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos em breve,
Com amor e obsessão,
Dia Nobre
embora o tempo tenha sido mais escasso do que gostaria, tenho tentado alternar leituras de clássicos que ainda não li com literatura contemporânea. e, felizmente, tenho sido muito feliz nas escolhas de autoras que estão em plena atividade, como a fabiane, que você citou. os dois livros dela são interessantíssimos (além da newsletter que ela escreve) e já estou ansioso pela próxima publicação. anotei as dicas que você deu como sugestão de próximas leituras.
Dicas gostosas e preciosas. Tou lendo o romance da Enriquez (nossa parte da noite) e gostando muito. Era pra ser prum clube do livro, mas falhei no prazo (é um calhamaço). Também quero ser lida agora e a newsletter tem sido um lugar massa para receber meus leitores. Beijo