#10 "Espero sobreviver": flores e violência contra as mulheres
Nessa newsletter eu falo sobre a última série que me impactou: As flores perdidas de Alice Hart e reflito sobre a escrita do meu primeiro romance.
Oi, oi! Eu sou a Dia e essa é uma newsletter com intenção de elaborar questões sobre escrita, literatura e saúde mental. A ideia é que ela seja quinzenal, mas como sou Aquariana e Borderline, vai depender do meu humor. ;)
Semana passada eu maratonei uma série australiana que encontrei por acaso zapeando entre as diversas ofertas da plataforma de streaming Prime Video: As flores perdidas de Alice Hart (The Lost Flowers of Alice Hart ) baseada no livro homônimo de Holly Ringland (não tem tradução brasileira).
O título me chamou muita atenção, pois lembrei que em algum momento da minha estranha adolescência eu fiquei obcecada com os significados ocultos das flores depois que encontrei um livrinho em uma biblioteca que era uma espécie de dicionário. Infelizmente, eu perdi essa referência porque queimei meus diários da primeira adolescência em um surto muito doido que tive (mas isso é história pra outra carta).
Eu sempre gostei de plantas e devo isso a minha avó que tinha dedo verde e muitas plantas no quintal. Até hoje, mesmo morando em um apartamento eu cultivo algumas jiboias, zamioculcas, lírio-da-paz, pimenteiras, sansevierias, cactos e suculentas, mas meu sonho é ter uma casa com um belo jardim cheio de flores.
Flores e folhas foram muito usadas como símbolos, alegorias e formas de representar sentimentos ao longo dos séculos. Na Antiguidade, os hindus consideravam que as flores eram a morada das ninfas e das sílfides. Os gregos e romanos associavam as flores aos deuses e deusas, por exemplo, Hera ou Juno era associada à flor de liz; Démeter ou Ceres à papoula; Ártemis ou Diana era representada pela margarida; o cipreste era símbolo das Moiras ou Parcas, e, assim por diante.
No Cristianismo, as flores também possuem um papel importante sendo associada à diversas místicas, santas e ao próprio Cristo: a flor de maracujá representa a Paixão, o lírio que sempre acompanha São José ou o Cordeiro, a inocência; a rosa sem espinhos é o símbolo de Maria e dá nome ao Rosário, em que cada conta representa uma rosa ofertada à Nossa Senhora pelo fiel; o odor de rosas na hora da morte é um atributo de santidade. São vários os usos desse leitmotif nas hagiografias e na estética religiosa.
Na História da Arte, as flores também nunca aparecem de forma gratuita. Todas tem uma função e enriquecem as obras de sentidos, seja em monumentos, na arquitetura funerária, na literatura. Enfim, as flores tem uma importância imensa no imaginário e na cultura, indo muito além da função de adorno.
A linguagem das flores: como falar sobre a violência
“Mrs. Dalloway disse que ela mesma ia comprar as flores”.
Virginia Woolf
A floriografia, o estudo das flores é, originalmente, uma prática persa, desenvolvida na Turquia. Em 1711, esse conhecimento foi levado para a Inglaterra por uma poeta e escritora inglesa chamada Mary Wortley Montagu** (1689-1762). Daí uma série de publicações feitas ao longo do século 18 e 19 exploraram o potencial comunicativo das flores, mas a mais famosa é o livro A Linguagem das Flores (Le langage des fleurs) publicado em 1819 por Louise Cortambert, sob o pseudônimo Madame Charlotte de La Tour. Este foi o primeiro dicionário de floriografia ocidental e era um objeto obrigatório para quem queria se comunicar em segredo. Você pode ler em francês na versão digitalizada do Internet Archive.
A pesquisadora da FAPESP, Alessandra El Far investiga em sua tese de doutorado como as flores eram importantes nas práticas de galanteria Rio de Janeiro do século 19, uma vez que as mulheres tinham pouquíssima liberdade de ação e expressão. Os códigos secretos eram utilizados para driblar as proibições e os relacionamentos clandestinos em uma forma de comunicação não-verbal que revelava muito da sociedade da época.
Na série, baseada no livro homônimo de Holly Ringland, Alice Hart (Alycia Debnam-Carrey) é uma floriográfa, uma pessoa especializada no plantio e no cuidado com as flores, que vive em Thornfield, uma fazenda de flores gerida por June (Sigourney Weaver), sua avó.
(Como não quero dar spoilers, não vou me estender muito sobre o roteiro. Assistam!)
Ao longo da série, descobrimos que a fazenda abriga mulheres, em sua maioria, vítimas de abusos e violência doméstica. Elas também são chamadas de Flores, pois cada uma delas carrega uma bagagem repleta de significados profundos. Se em outras épocas, as flores serviam para transmitir mensagens de amor em relacionamentos secretos, aqui as flores são mensageiras de histórias extremamente dolorosas.
A série me tocou muito, não só pela fotografia que é belíssima, a atuação brilhante e o roteiro impecável, mas por tratar do tema com uma sensibilidade rara de se ver. Violência doméstica é um dos fatores de mais mortes de mulheres no Brasil hoje e é o tema central do meu primeiro romance, um trabalho que escrevo há dois anos e cuja maior dificuldade está na forma de narrar.
Como falar sobre violência de uma forma não violenta?
Essa é a questão que me tira o sono quando se trata do livro que estou escrevendo. Nos últimos anos, li muitas obras que tratam de feminícidio, violência doméstica física e verbal e algumas são tão gráficas que me deixavam enjoada. O tema por si só é muito difícil. Então, decidi que queria escrever o livro que eu gostaria de ler como instruiu a Toni Morrison em seu famoso discurso no encontro anual do Ohio Arts Council, em 1981: um livro que tensionasse a questão da violência sem ser um livro violento (Não sei se consegui, isso só os leitores e o tempo vão me dizer, mas foi a minha intenção desde o início).
Acho que a série conseguiu isso por usar a metáfora das flores, um objeto que é por si só delicado. No audiovisual o recurso de imagem ajuda bastante a suprimir diálogos ou narrações, o que não acontece na literatura. Tenho contado com a leitura beta de algumas pessoas de muita sensibilidade e o resultado tem sido muito positivo o que me dá a esperança de que estou contando essa história do jeito que eu gostaria de lê-la.
Notas:
*Simbologia das flores e plantas no quadro de Millais: o salgueiro, a urtiga e a margarida podem ser associadas ao amor, a dor, inocência e abandono, e as violetas, próximas ao seu pescoço, com fidelidade, castidade ou mesmo morte, como podem ser vistas as papoulas. (Ver o trabalho da Viviane Baschirotto sobre Ofélia)
**Lady Mary Wortley Montagu também é a precursora da imunização contra a varíola. Ela estudou e difundiu a técnica da inoculação que aprendeu enquanto morava na Turquia, mas seus conhecimentos foram rechaçados e mais tarde, o médico inglês Edward Jenner desenvolveu a pesquisa e ficou com os créditos (quem diria, não é mesmo?).
Se você gosta de ler o que escrevo, indica essa newsletter para uma amiga.
Outras prosas
Alguns livros sobre o tema que me impactaram:
Garotas mortas, Selva Almada, publicado pela Todavia com tradução do Sérgio Molina;
Mulheres empilhadas, Patrícia Melo pela Companhia das Letras;
Las cosas perdidas en el fuego, Mariana Enriquez, publicado pela Vintage Español.
Agradeço demais a você que chegou até aqui. Eu adoraria saber mais o que achou da minha prosa. Você pode responder diretamente a este e-mail ou deixar um comentário.
Nos vemos na próxima,
Um beijo, se cuide.
Dia Nobre
Eu acabei de ler Sacrifícios Humanos, da María Fernanda Ampuero, e é incrível como ela consegue isso, o primeiro conto é uma história assustadora sem nada gráfico, se chama Biografia. Todos os contos são assim, têm essa atmosfera de maldade, de que tem algo errado, gente racista e má mesmo, mas sem pesar a mão pro gore nem nada. Eu já tinha lido Rinha de Galos e gostado muito, precisava recomendar, acho que conversa bem com a sua reflexão.
Adorei. Vou assistir a série!!